domingo, 27 de outubro de 2024

AS CONQUISTAS AMOROSAS DE CASANOVA E DOM JUAN (*)

Ao contrário dos outros grandes sedutores de mulheres, Giacomo Casanova não é um personagem de ficção. Ele realmente existiu. Nasceu em Veneza, no dia 2 de abril de 1725, e era filho de atores pertencentes à pequena burguesia. Morreu em 4 de junho de 1798. Se ele se tornou um personagem famoso, foi graças à sua própria vida, que ele conta nos 16 volumes de suas Memórias. Dizem que ele tinha um físico bastante agradável e uma viva inteligência. Recebeu uma excelente educação: doutor em direito, conhecia o grego, o latim, o francês e o hebreu, além de se virar em espanhol e em inglês. Possuía profundos conhecimentos de teologia, de filosofia e de matemática. Exerceu diversas profissões, que abandonou logo em seguida: padre, militar, músico e até agente secreto! Dançava como ninguém e era excelente na esgrima e na equitação. Viajante incansável, percorreu incessantemente toda a Europa: da Espanha à Rússia, da Inglaterra à Polônia. Em suma, era um homem fora do comum: bonito, inteligente, culto; tinha tudo para agradar e, ainda por cima, era devorado por uma paixão incontrolável: as mulheres. Casanova quer seduzir todas as mulheres, ele ama todas elas e não escolhe: mulher do povo ou mulher da corte, jovem ou velha, ele pega aquilo que a vida lhe traz, autêntico "amontoado insensato de beleza e de lixo, de inteligência e de vulgaridade, verdadeira feira do acaso sem freio e sem escolha!" (Zweig 1937, p. 135). Casanova é essencialmente um ser do prazer. "Não é um sedutor, é um gozador" (Marceau 1948, p. 142). Ele não somente se deleita com o seu próprio prazer, mas o prazer do outro o enche de deleite. "Ele gosta do prazer que proporciona às mulheres" (idem, p. 116). Casanova não é um sedutor estratégico, ele não planeja, não calcula. "Se tivesse sido apresentado à devota Madame de Tourvel, Casanova teria, sem dúvida, como Valmont, procurado conquistá-la. Mas, entrementes, para matar sua fome, teria ido à cata das empregadas do castelo, de algumas camponesas das redondezas e da velha tia, ainda por cima" (idem, p. 185). Ele vive o momento e é totalmente dominado por suas paixões. "Nunca tive condições de me ultrapassar e nunca terei" (Zweig 1937, p. 125). Contrariamente aos verdadeiros sedutores, que preferem seduzir as mulheres e que encontram nas artimanhas e subterfúgios seu verdadeiro prazer, Casanova "não sente prazer nas etapas, (...) ele não as respeita" (Marceau 1948, p. 134). "Ele não reflete nem trama; é no infortúnio que vêm até ele, para salvá-lo, inspirações astuciosas e muitas vezes geniais; ele nunca prepara, com planos ou cálculos (ele não tem muita paciência), nem a menor das ações" (Zweig 1937, p. 125). É inútil procurar nele motivos ocultos e inconfessáveis ou segredos que não devam ser revelados. Ao contrário, Casanova é um ser de superfície, cujo exterior se confunde com o interior e cujo objetivo se esgota no instante presente. Como Casanova seduz? De uma maneira muito simples: ele se dá sem reservas, se abandona completamente, possuído pelas mulheres. Elas sentem nele a febre animal: "ele não precisa inventar artifícios líricos ou enganadores para seduzir: Casanova só precisa deixar agir sua paixão e ela trabalha para ele" (Zweig 1937, p. 138). As mulheres se deixam possuir por ele porque sentem que ele é possuído por elas. "Nada se pode ir buscar nesse mestre, nada se pode aprender com ele, pois não existem truques próprios de Casanova, não há uma técnica casanovense da conquista e da sedução. Seu segredo está na sinceridade do desejo, na expressão elementar de uma natureza apaixonada" (id., ibid.). Casanova não estraga as mulheres, ele não é demoníaco, ele permanece na superfície; é o corpo delas que ele quer, e não a alma. Ele cumpre sempre as suas promessas; por isso, as mulheres que conquistou não se sentem lesadas nem feridas: "Graças a seu magnífico depósito de sensualidade, ele dá prazer por prazer, corpo por corpo e nunca contrai dívidas da alma" (id., ibid.). De fato, suas relações com as mulheres são realmente leais, porque são simplesmente de ordem sexual e sensual (id., ibid.). Ele não provoca nenhuma catástrofe. Ele fez muitas mulheres felizes e não fez nenhuma delas ficar histérica. Todas saem intactas de uma aventura puramente sensual para voltar à vida cotidiana, ou seja, a seus maridos ou a outros amantes. Mas nenhuma delas se suicida nem se abandona ao desespero; seu equilíbrio interior não é perturbado (...). Ele as inflama sem consumi-las; conquista sem destruir, seduz, mas não desmoraliza (...). (idem, p. 140) Mais do que isso, as amantes de Casanova ignoram o ciúme, não guardam rancor dele por tê-las deixado e o recomendam umas às outras (idem, p. 147). Elas chegam a escolher uma substituta para ele ou a discutir com ele sobre quem vai ser o seu sucessor. Assim, na verdade, ele não conquistou essas mulheres para si mesmo, mas para revelar-lhes uma forma de prazer alegremente aceita, e é por isso que logo elas procuram recrutar novas adeptas para esse culto realizado para torná-las felizes: a irmã mais velha leva a caçula para o altar desse adorável sacrifício; a mãe leva a filha a esse terno professor; cada amante incentiva a outra a participar do rito e da dança desse deus tão pródigo. (o grifo é nosso; id., ibid.) Não é difícil compreendê-las: Casanova é um sedutor generoso que "não abandona uma mulher sem lhe deixar dinheiro, seu carro, um marido" (Marceau 1948, p. 190), sem recompensá-la com a certeza de ter sentido prazer no mais profundo da sua própria carne. Em suma, mesmo que as abandone ou que elas decidam abandoná-lo, "...nenhuma delas gostaria que ele fosse diferente do que foi: por isso, Casanova só precisa ser o que é, ou seja, sincero na infidelidade de sua paixão (...)" (Zweig 1937, p. 138). Dom Juan Existem duas versões muito conhecidas de Dom Juan: o Dom Juan de Molière, peça de teatro encenada em 1665, e o famoso Dom Giovanni de Mozart, cujo libreto foi composto por Lorenzo da Ponte para a famosa ópera apresentada pela primeira vez em 1787. Considerando a grande semelhança entre o personagem de Dom Juan de Da Ponte e Casanova, cujas características acabamos de apresentar, julgamos que deveríamos analisar apenas o Dom Juan de Molière, que apresenta particularidades diferentes. A peça de cinco atos apresenta, inicialmente, a cena da deserção de Dom Juan. Ele acaba de abandonar a mulher, Dona Elvira, que reclama vingança por tal afronta. Dom Juan, perseguido pelos irmãos de Dona Elvira, chega a uma pequena aldeia, depois de ter naufragado. No caminho, ele aproveita para seduzir duas jovens camponesas, embevecidas com suas belas palavras e encantadas com seus ares de grande senhor. Em seguida, estando num cemitério diante do túmulo de um Comendador que outrora havia assassinado, ele convida a estátua do morto a vir fazer-lhe uma visita, e ela aceita. De volta à casa, à mesa, Dom Juan vê reaparecer a estátua do Comendador, que também lhe faz um convite. Por bravata, ele aceita o desafio. Finalmente, depois de ter enganado todo mundo, seu pai, Dom Luis, Elvira e os irmãos, além das camponesas Carlota e Maturina, em meio a trovoadas e rasgado por um turbilhão de raios, Dom Juan, marido infiel e sedutor impenitente, é precipitado no inferno pelo espectro do Comendador. Dom Juan quer seduzir todas as mulheres. Sganarelle diz a respeito dele: "Ele gosta de passear de uma relação a outra, e não gosta de ficar parado" (Molière, ato 1, cena 2, p. 38). Entretanto, longe de amá-las apaixonadamente como Casanova, ele procura vencê-las. "Não há nada que possa refrear a impetuosidade dos meus desejos: tenho um coração para amar a terra inteira; e, como Alexandre, desejaria que houvesse outros mundos para poder estender até lá minhas conquistas amorosas" (idem, p. 40). Para ele, as mulheres representam uma espécie de desafio, um objeto de conquista e, como menciona Zweig (1937, p. 144), é impossível pensar em Dom Juan com uma prostituta ou num prostíbulo, porque essas mulheres, de certo modo, já estão ganhas, isto é, vencidas. Ele pratica uma forma de seleção e, quanto mais as mulheres opõem resistência às suas investidas, mais elas se tornam interessantes para ele: "Enfim, não há nada mais doce do que vencer a resistência de uma bela mulher, e tenho, nesse aspecto, a ambição dos conquistadores, que voam perpetuamente de vitória em vitória e não conseguem se decidir a limitar seus desejos" (Molière, ato 1, cena 2, p. 40). É a beleza, antes de tudo, que atrai Dom Juan. O apelo dessa beleza é, para ele, um imperativo ao qual é obrigado a responder. "De qualquer modo, não posso recusar meu coração a tudo o que vejo de amável; e, assim que um belo rosto o solicita, se eu tivesse dez mil, eu os daria" (idem, pp. 39-40). Entretanto, a mesma beleza que o deslumbra e o faz sucumbir é logo relegada a segundo plano. Dom Juan não se envolve profundamente, não estabelece uma relação íntima com a mulher amada; ele se guarda, se poupa. "Por mais que eu esteja comprometido, o amor que tenho por uma mulher não obriga minha alma a ser injusta para com as outras; tenho olhos para ver os méritos de todas e rendo a cada uma as homenagens e os tributos onde a natureza nos obriga" (id., ibid.). Tudo ocorre, então, como se Dom Juan estivesse vivendo sempre o amor nascente e como se a única coisa que contasse para ele fosse o perpétuo recomeço: "Os amores nascentes, afinal de contas, têm encantos inexplicáveis, e todo o prazer do amor está na mudança" (id., ibid.). Isso explica por que, para esse grande sedutor, a duração é a própria morte. "Queres que nos comprometamos em ficar com o primeiro objeto que nos agarra, que renunciemos ao mundo por ele e que não tenhamos olhos para mais ninguém? Coisa bonita, essa, de querer ostentar a falsa honra de ser fiel, enterrar-se para sempre numa paixão e morrer desde a juventude para todas as outras belezas que podem surpreender nossos olhos! Não, não, a constância só é boa para os ridículos" (id., ibid.). Essa recusa da relação que dura levou Felman (1980) a dizer que Dom Juan é o inconstante, o corredor, o viajante, aquele que está sempre de partida, o sem-morada, aquele que está sempre em movimento, que nunca pára. Compreende-se o porquê de ele não poder nem querer ser fiel: isso significaria se expor à derrota, entregar as armas aos pés do inimigo, que é a mulher. A mulher, como todo adversário, representa o mal, ela é inclusive o instrumento do pecado. Seus sentidos e seu ser servem apenas para o "mal". Sua natureza, sua própria existência já é sedução e risco; é por isso que a virtude mais perfeita na mulher é só aparência, ilusão e máscara da serpente. Dom Juan não acredita na pureza nem na castidade de nenhuma dessas filhas do diabo; ele sabe que cada uma delas está nua por baixo das roupas, acessível à tentação. (Zweig 1937, p. 144) É necessário, então, vencer a mulher antes de ser vencido; o tormento de outrem dará até mais emoção à sua busca de prazer. Por isso, contrariamente a Casanova, Dom Juan prefere a sedução às mulheres, fazê-las sucumbir a fazer amor com elas, o prazer maquiavélico ao prazer sensual: "Experimenta-se um prazer extremo em submeter, por meio de cem galanteios, o coração de uma mulher; em ver, dia após dia, os pequenos progressos que se realizaram; em combater, com manifestações de entusiasmo, lágrimas e suspiros, o inocente pudor de uma alma que tem dificuldade em entregar as armas; em derrubar, pouco a pouco, todas as suas pequenas resistências; em vencer os escrúpulos que representam sua honra e em levá-la suavemente aonde gostaríamos que fosse" (Molière, ato 1, cena 2, p. 40). O donjuanismo é, portanto, muito mais uma paixão do espírito do que uma exaltação do instinto (De Rougemont 1996, p. 104). Sempre pronto para o combate, Dom Juan elabora diversas estratégias para vencer seus adversários. Gusman, escudeiro de Elvira, preocupado com o destino que Dom Juan reservava para ela, fala-nos disso nos seguintes termos: Não sei, na verdade, que homem pode ser esse, se ele realmente agiu conosco com tanta perfídia; e não entendo como, depois de tanto amor e de tanta impaciência demonstrada, de tantos galanteios insistentes, de juramentos, de suspiros e de lágrimas, de tantas cartas apaixonadas, de declarações ardentes e de promessas reiteradas, de tanta emoção e de tanta exaltação que ele deixou transparecer, até vencer, em sua paixão, o obstáculo sagrado de um convento, para colocar Dona Elvira em seu poder, não compreendo, repito, como, depois de tudo isso, ele teria coragem de faltar com sua palavra. (Molière, ato 1 cena 1, pp. 35-36) Pois é, a técnica final, a arma secreta de sedução de Dom Juan é a promessa de casamento, promessa que é sempre quebrada, evidentemente. Como menciona Sganarelle, o fiel servidor de Dom Juan: "Prometer casamento não lhe custa nada; é a armadilha de que ele se serve para agarrar as mulheres, e está sempre pronto a pedir todas as mãos em casamento" (idem, p. 36). Como vimos, o importante para Dom Juan é a conquista. Ao atingir seu objetivo, ele não pode estabelecer uma relação a longo prazo com sua parceira e vai continuar seu combate noutro lugar: "Mas quando nos tornamos senhores, não há mais nada a dizer nem a desejar; toda a beleza da paixão acaba e adormecemos na tranqüilidade de um tal amor" (Molière, ato 1, cena 2, p. 40). Por exemplo, depois de unir-se a Dona Elvira para sempre, pelo casamento, Dom Juan a abandona. Esse abandono, natural na lógica de Dom Juan, será percebido por Dona Elvira como uma traição inqualificável: "Ah, celerado! Agora te conheço por inteiro; e, para infelicidade minha, conheço-te quando não é mais tempo de te conhecer e quando esse conhecimento só pode servir para o meu desespero" (Molière, ato 1, cena 3, p. 48). Enquanto Casanova dá amor, e também se dá, Dom Juan toma, rouba das mulheres o que elas têm de mais precioso: a honra. É o que as deixa tão enfurecidas quando descobrem o logro. De fato, como mostra Zweig: Assim que são vencidas por sua técnica fria, as mulheres passam a ver em Dom Juan o próprio diabo; elas detestam, com todo o ardor do amor que lhe dedicavam na véspera, o inimigo hereditário e enganador que, no dia seguinte, derrama sobre a paixão que sentiam a ducha gelada de seu riso irônico (...). Elas sentem vergonha de sua própria fraqueza, ficam loucas, furiosas e enraivecidas em sua cólera impotente contra o malandro que as enganou, que as fez cair no erro e as espoliou, e passam a odiar todo o sexo masculino. (1937, p. 145) O que é odioso na sedução de Dom Juan é a violação de sua promessa, que leva ao rompimento da duração, pois toda promessa de casamento é sempre promessa de duração. Por conseguinte, o escândalo, em Dom Juan, é que ele promete sem parar e viola, assim, a "lei" da promessa à qual suas vítimas crêem que ele também está ligado. As vítimas tomam consciência de que Dom Juan não estava realmente em relação com elas, que ele não jogava o mesmo jogo, que havia sempre uma distância entre elas e ele, que "sua boca não estava de acordo com o seu coração" (Molière, ato 5, cena 2, p. 100). Dom Juan não está em relação com ninguém. Ele transforma a mentira em sistema e não se compromete com a outra pessoa, mas compromete a outra pessoa com ele. (*) EUGENIO SANTANA é autor de 20 livros publicados e 3 inéditos. "Ventos fortes, Raízes profundas", Madras editora, é um deles. Escritor, jornalista, ensaísta, filósofo, biógrafo e gestor editorial. Contato: (62) 99635-8005
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segunda-feira, 21 de outubro de 2024

JARDIM DA ALMA

Há um jardim secreto, um jardim interior dentro de cada um de nós, em nossa Alma! Todas as vezes que precisamos de força, coragem, fé e esperança, então nos recolhemos em nosso silêncio, em um momento de oração, e introspecção, com os olhos fechados, respirando calmamente, e imaginamos o nosso caminhar no mais belo dos Jardins, o Jardim da Alma. Nesse momento, não devemos pensar em nossos problemas, mas focar nossa energia vital na resolução dos problemas, na Alegria, na Luz e na Paz. O Jardim da Alma é um espaço interior que conecta nossa Alma à Natureza e à Essência da Vida! (Eugenio Santana)

terça-feira, 15 de outubro de 2024

CONFISSÕES DE OUTONO...

E se algum dia, ajoelhado diante de seu túmulo, sentir que o fogo da raiva está tentando se apoderar de você, lembre-se de que na minha história, como na sua, há um anjo que conhece todas as respostas. E que tudo quanto era decente e limpo e puro nesse mundo e tudo por que valia a pena continuar respirando estava naqueles lábios, naquelas mãos e no olhar daqueles dois felizardos que, eu soube com certeza, ficariam juntos até o fim de suas vidas. Um homem jovem com uns poucos cabelos brancos e ligeira calvície e uma sombra no olhar caminha ao sol do meio-dia entre as lápides do cemitério, sob um céu preso no azul do mar. Leva nos braços um menino que mal pode entender suas palavras, mas que sorri quando encontra seus olhos. O homem permanece ali por um momento, em silêncio, as pálpebras apertadas para conter o pranto. A voz de seu filho, Enzo Gabriel, o traz de volta ao presente e quando ele abre os olhos vê que o menino está apontando para uma estatueta que desponta entre as pétalas de flores secas, à sombra de um vaso de cristal. Sua mão procura entre as flores e pega uma figurinha de gesso, tão pequena que cabe na mão fechada. Um anjo. As palavras que pensava esquecidas se reabrem em sua memória alada como uma velha ferida. O menino tenta pegar o anjo que repousa na mão do pai e, ao tocá-lo, seus dedos o empurram sem querer. A estatueta cai sobre o mármore e se quebra. E então ele vê. É um papelzinho dobrado escondido no interior do gesso. O papel é fino, quase transparente. Ele abre com a ponta dos dedos e, na mesma hora, reconhece a caligrafia... Guarda o papel no bolso. Em seguida, deixa uma rosa branca em cima do túmulo e retorna sobre seus passos com o menino nos braços, até a galeria de ciprestes onde a mãe de seu filho espera por ele. Os três se fundem num abraço e quando ela o encara no fundo dos olhos, descobre neles alguma coisa que não estava lá antes. Algo turvo e escuro que lhe dá medo. - Você está bem, Eugenio? Ele olha para ela longamente e sorri. - Eu te amo – diz, e a beija, sabendo que a história, sua história, ainda não terminou. Acabou de começar. (Por EUGENIO SANTANA, FRC, Escritor, filósofo, jornalista; gestor editorial)

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

PÁSSAROS DA AURORA (*)

Estar vivo é milagre permanente. Por muito pouco a vida se esvai: um coágulo de sangue no cérebro, um tropeção, o vírus, a bala perdida, o acidente de trânsito. A cada aurora, o renascer. Agora sei por que o bebê faz manha à hora em que o sono começa a vencer-lhe a resistência. Teme a morte, a segregação do aconchego, o retorno às cavernas uterinas. O sono apaga-lhe os sentidos, a consciência, o (con)tato com mãos e olhares afetuosos. De minhas ranhuras brota delicado som de flauta e violino. Não sou dado ao absinto e sei que a vida é aposta. Todas as minhas fichas estão postas no tabuleiro dos deserdados e excluídos e na felicidade compartilhada. Jogo ao lado dos perdedores. É apenas isto que me interessa: ao faminto, o pão e a paz. De que valem todos os poderes do mundo se não enchem um prato de comida? De que valem todos os reinos se não plenificam a alma com o sabor do morango? Não sou predador de pássaros. Quero-os vivos, livres, o vôo esperto atravessando as asas do vento. Quero-os saltitantes entre as flores que cultivo no jardim da memória. Quero-os gorjeando sinfonias matutinas. Quero-os despertando-me, sem, contudo me provocarem a vertigem das alturas. Chega de abortos! Quero a vida despontando na cidadania plena, na obstinação dos inconformistas, na ociosidade intemporal dos mendigos, nas mulheres condenadas a bordar dores incolores, na despossuída humilhação dos que suplicam por um pedaço de terra, de chão, de casa, de direito. Tenhamos todos acesso à vida, distribuída com fartura como pão quente pela manhã, sem jamais temer as intermitências da morte. D/amor/te. Quero um tempo de livros saboreados como pipoca, o corpo saciado de apetites, a mente livre de dúvidas, a alma matriculada num corpo de baile, ao som dos mistérios mais profundos. E de pássaros orquestrados pela aurora, rios desnudados pela transparência das águas, pulmões exultantes de ar puro e mesa farta de manjares dionisíacos. Reparto meu pão com (sol)dados de afetos, dançarinos trôpegos de incertezas, duendes que povoam alucinados meu imaginário, musas incorrigíveis de meu fragmento literário, anjos protetores de minha frágil fé e místicos que revelam o pior de mimesmo. Neste mundo desencantado, mas não redimido, neles sorvo a minha regeneração como as anfípodas que, no fundo mais profundo dos oceanos, se banqueteiam de flocos de matéria orgânica. (*) EUGENIO SANTANA é Escritor, Filósofo, Ensaísta, Biógrafo, Jornalista MTb 001319. Membro da ADESG-DF – Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, colaborador do Greenpeace-SP. Autor de 20 Livros publicados. "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, SP, é o seu best seller. E-mail: es.escritor1199@gmail.com - WhatsApp: (62) 99635-8005