segunda-feira, 20 de julho de 2020

MOTIVADOS PELA FÉ OS CÁTAROS SE RENDERAM E MORRERAM CANTANDO... (*)

Muito dos fatores que contribuíram para o apelo do hermeticismo e da cabala cristã foram também responsáveis pela ascensão do catarismo, uma doutrina cristã herética que desafiava diretamente a autoridade da Igreja Católica medieval. Os cátaros floresceram no século XII, período em que aumentaram os contatos entre o Ocidente e o Oriente. As Cruzadas – esforço cristão por reconquistar Jerusalém e outras partes da Terra Santa das mãos dos muçulmanos – estavam no auge e os soldados cristãos, com os mercadores que os seguiam, estavam voltando com ideias desconhecidas na Europa desde a queda do Império Romano. Entre elas estava a heresia do maniqueísmo. Embora liquidado pela Igreja séculos antes no Ocidente, o maniqueísmo sobreviveu nas áreas orientais remotas da cristandade, pelo menos como uma influência, e tingiria fortemente a doutrina cátara. O mesmo século XXII que assistiu ao zelo religioso expressado nas Cruzadas foi também, paradoxalmente, uma época de crescente desilusão com a Igreja Católica e com as maneiras terrenas do clero. Desde suas origens humildes como uma entre as muitas seitas do Império Romano, a Igreja tornara-se uma instituição de riqueza e privilégio. Com frequência, padres e bispos viviam no luxo, ao mesmo tempo que se entregavam a práticas espúrias tais como perdoar pecados em troca de dinheiro. Em grande parte, foi como reação contra o fausto e
o esplendor indecorosos da Igreja o catarismo se enraizou, principalmente no norte da Itália, e depois por todo o sul da França. Com medo da repressão da Igreja, os primeiros cátaros mantiveram sua fé em segredo. Em pouco tempo, porém, a seita atraiu tantos seguidores, que pôde passar a agir abertamente sob a proteção de senhores feudais poderosos, capazes de desafiar o papa. No sul da França, o catarismo e outro movimento vagamente semelhante, conhecido como waldensianismo, tornaram-se, na prática as religiões oficiais. As teologias cátara e católica estavam em nítido conflito. Do ponto de vista católico, a salvação vinha através do sofrimento físico de Jesus, um ser espiritual que havia ingressado na carne de modo a redimir a humanidade morrendo na cruz. Segundo os ´cátaros, a redenção da humanidade não vinha da morte de Cristo, e sim do exemplo de vida que ele levou à terra. Os cátaros negavam também que o mundo físico imperfeito pudesse ter sido criado por um Deus perfeito; tal como os gnósticos e maniqueístas antes deles, os cátaros rejeitavam a visão bíblica da criação e, com efeito, todo o Antigo Testamento. Em vez disso, acreditavam que a terra e a humanidade haviam sido moldadas pelo demônio. Um cátaro alcançava a salvação mediante o conhecimento da verdadeira origem e destino da humanidade e através da renúncia ao mundo satânico da carne, de uma vida de abstinência e pobreza. Ao contrário dos católicos, os cátaros acreditavam na reencarnação; se uma pessoa fracassasse em uma vida, alegavam, teria a oportunidade de ter sucesso em outra. Rejeitavam o batismo, a cruz como símbolo, a confissão individual e todos os ornamentos religiosos. Os serviços eclesiásticos eram simples e podiam ser realizados em qualquer parte. Consistiam de uma leitura do evangelho, um sermão breve, uma benção e a Oração do Senhor. A abordagem “de volta básico” da liturgia feita pelos cátaros antecipou a simplicidade de algumas das seitas protestantes de épocas posteriores. O catarismo tinha duas classes, ou graus. Os leigos eram conhecidos como crentes. Não se exigia que seguissem as rígidas regras de abstinência reservadas para os perfecti ou bonhommes (homens bons) eleitos, que formavam a hierarquia da igreja cátara. Qualquer pessoa que desejasse juntar-se aos perfecti, homem ou mulher, teria de enfrentar um período de prova nunca inferior a dois anos. Durante esse tempo, a pessoa renunciava a todos os bens terrenos, vivia comunalmente com outros perfecti e se abstinha de vinho e carne. Para evitar as tentações da carne, os iniciandos não podiam ter qualquer contato com o sexo oposto e faziam um voto de jamais dormir nus. No final do período de prova, o noviço recebia o consolamentum, um rito que combinava características de batismo, confirmação e ordenação, conduzido em público diante de uma grande congregação. Nesse rito, o iniciando respondia a uma série de perguntas feitas por um veterano da igreja, e depois prometia uma vida de pobreza, abstinência e obediência a Deus e aos evangelhos. A Igreja Católica fez o que pôde para combater a expansão da heresia cátara. Em primeiro lugar, tentou atrair os cátaros de volta ao rebanho despachando missões de catequese formadas por monges cistercianos, lideradas pelo chefe da ordem, o futuro são Bernardo de Clairvaux. Os monges fizeram poucas conversões, e a recalcitrância dos hereges desanimou Bernardo, cujos esforços para alcançá-los foram respondidos com vaias e apupos nas ruas de Toulouse. As regiões cátaras do sul da França estavam sob o controle político do conde Raymond VI de Toulouse, também seguidor da fé cátara. O diálogo entre as autoridades cátaras e as católicas interrompeu-se quando um escudeiro do conde assassinou um enviado especial do papa Inocêncio III a Toulouse. O assassinato deixou o papa tão enraivecido que ele, literalmente, não conseguiu falar durante dois dias. Então, ele declarou que os cátaros eram “piores que o próprio sarraceno” (termo cristão para os muçulmanos) e convocou uma cruzada para varrer a heresia de uma vez por todas. Seu apelo foi respondido com presteza por muitos cavaleiros franceses, levados a agir por diversas razões. Tratava-se da primeira cruzada dirigida contra o inimigo na Europa, de modo que não exigia nem o tempo, nem as despesas necessárias para uma cruzada na Terra Santa. Também, além da salvação prometida a todos os que se unissem à cruzada por quarenta dia pelo menos, os recrutas podiam contar com a posse dos despojos materiais do território conquistado. A cruzada foi lançada em 1209, com 20.000 cavaleiros montados à frente de um enorme exército. Em sua primeira grande vitória, os cruzados tomaram a cidade de Beziers e massacraram quase todos os habitantes, entre eles muitos que se consideravam católicos leais. Quando perguntaram ao legado papal como distinguir entre hereges e católicos, dizem que ele respondeu: “Matem-nos a todos. Deus se encarregará dos seus.” Contudo, a fé cátara era forte e as legiões papais enfrentaram uma longa luta. Quase quarenta anos se passaram antes que os cruzados esmagassem a última resistência armada e células secretas de fiéis cátaros sobreviveram por mais meio século. Uma medida do peso do catarismo sobre seus seguidores pode ser vista na disposição destes para o martírio. Milhares de perfecti, diante da opção entre a morte e a conversão ao catolicismo, negaram-se a renunciar a sua fé. Morreram às vezes de fome, acorrentados às paredes de calabouços, mas em geral queimados publicamente em grande piras. Diante da perseguição e da tortura, alguns optaram pelo rito cátaro da Endura, uma forma santificada de suicídio pelo jejum. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista e ensaísta. Autor de 13 livros publicados. Pela Madras editora, “Ventos fortes, Raízes profundas”, entre outros. Ganhador de 18 prêmios literários de âmbito nacional. É Rosacruz – Grau Superior Iluminati. (61) 9.8240-6270

domingo, 5 de julho de 2020

QUAL TERIA SIDO A PRIMEIRA PALAVRA PROFERIDA PELO HOMEM? (*)

Se um dia a ciência viesse a reconstruir o vocábulo inaugural, ele designaria o espanto da vida consigo mesma. A frase a ser articulada, talvez milhares de anos mais tarde, ampliaria esse sentimento: até hoje todas as palavras, em todas as frases, circulam em torno da mesma inquietude. Os homens se comunicam para comunicar sua perplexidade e, dentro dela, envolvidos como crisálidas em seus casulos, o medo e a esperança. Nos milênios sucessivos, desde o primeiro grito de espanto do homem, disciplinamos os ruídos da traquéia e treinamos a garganta, a língua e os lábios para a linguagem. É essa condensação extrema que confere ao aforismo as arestas cortantes que inevitavelmente ferem o leitor. Exprimindo o que à primeira vista muitas vezes parece ser uma generalização abusiva, o aforismo requer “reflexão”; ele desestabiliza as certezas cotidianas cristalizadas em frases feitas e, à luz de seu brilho repentino, apresenta aspectos da realidade até então ignorados. Somos transição, somos processo. E isso nos perturba. O fluxo de dias e anos, décadas, serve para crescer e acumular, não só perder e limitar. Dessa perspectiva nos tornaremos senhores, não servos. Pessoas, não pequenos animais atordoados que correm sem saber ao certo por quê. Se meu leitor e eu acertarmos nosso tom recíproco, este monólogo inicial será um diálogo – ainda que eu jamais venha a contemplar o rosto do outro que afinal se torna parte de mim. Então a minha arte terá atingido algum tipo de objetivo. A todos vocês, leitores, desejo que Deus desperte sempre seus sonhos adormecidos e lhes dê coragem, energia e serenidade para conquistá-los. (*) EUGENIO SANTANA é escritor e jornalista; ensaísta, biógrafo, revisor de texto, redator publicitário, agente literário e gestor editorial. Autor de 12 (doze) livros publicados. Detentor de 18 prêmios literários, em âmbito nacional. (61) 9.8240-6270 Whatsapp. email: autoreugeniosantana9@gmail.com