segunda-feira, 8 de julho de 2019
HOMEM ENTERRADO VIVO PELA MULHER AMADA - LADRA DE SEUS PROJETOS E PLANOS (*)
O filósofo Mario Sérgio Cortella diz que seu talento para discursar vem de pessoas que o inspiraram. Jean Perdu, personagem do livro A Livraria Mágica de Paris, de Nina George, encontrou inspiração em um encontro inesperado para voltar ao mundo dos vivos. Estes dois fatos se encontram em um dos mais delicados setores das relações humanas: o quanto uma vida toca a outra ao ponto de transformá-la. Da mesma forma que um número incontável de pessoas passa por nossas vidas sem deixar marcas, há aqueles despertadores de admiração, de afeto e inquietação.
Enquanto a inspiração de Cortella veio no sentido de se espelhar, a inspiração de Perdu veio da combustão entre o presente e o passado. Alguém que o inspirou no passado, fez dele oxigênio, sugando sua vontade de viver. E um outro alguém que no presente o inalou com suavidade, mas o expirou de volta para o mundo, uma outra versão de Perdu, não necessariamente mais viva, mas definitivamente mais atenta, inquieta e com mais fome de sentir e reagir. Um homem atormentado e enterrado vivo por vinte e um anos após ser deixado pelo diabo da mulher amada, idolatrada, ladra de seus planos e de praticamente toda sua existência. Dona que partiu deixando apenas uma carta e as sombras de um ex amor rondando a casa.
Perdu tornou-se cinza após ser deixado. Viveu por vinte e um anos com sorriso apagado, passos arrastados e sonhos desligados. O amor latente deu tanta vida à sua vida que quando partiu se sentiu no direito de tirá-la, mas deixou seu talento para ler almas e receitar livros em seu barco-livraria como quem receita remédios. Perdu não estava totalmente morto, era alma penada, rodeando o corpo ainda quente à espera de um outro suspiro que pudesse acenar um possível caminho de volta à vida. Ele permitiu que o inalassem, como tantas outras pessoas permitem. Não apenas enquanto o amor esteve presente, pois a coragem de almas que se amam não é doce quando não há entrega. Permitiu ser aspirado quase por completo na dor de ser deixado pela pessoa que mais confiava no mundo. Sem razão e explicação. Esqueceu que mesmo sendo um na cama, eram dois. E ela estava no seu mais justo direito de partir pelo motivo que achou pertinente. Perdu escolheu ser o oxigênio de alguém e esqueceu de recolher um pouco para continuar vivendo.
A reviravolta do livro é tão sútil quanto as reviravoltas da vida. O encontro com outro alguém que inala a fumaça das cinzas da morte que escolhemos em vida. Felizes são aqueles que encontram inspiração em seu interior. A maioria dos mortais, assim como Perdu, necessita de uma luz externa para tirar o cimento que cobre os olhos e assim descortinar possíveis caminhos. Perdu sentiu os primeiros sinais de vida germinar. Se arrepiou, chorou, se irritou e desejou. Tudo ao mesmo tempo. Bastou uma faísca para que a velha e boa saudade de si mesmo surgisse. Abriu mão da morte naquele encontro, rastejou como se estivesse ligado a aparelhos, mas era enfim uma alma que resistia, como toda alma que tenta se recuperar de uma grande perda, seja pela morte propriamente dita ou pela morte de tudo que planejava e acreditava.
Perdu morreu em vida por vinte e um anos por escolha e por estar cercado de apenas pessoas. Nenhuma dessas pessoas o inspiravam a ser diferente ou transformavam as toxinas de sua fumaça em algo melhor. Precisou de mais de duas décadas para permitir que um estranho fizesse o que um bom amigo costuma fazer: nos inspirar a respirar de verdade, outra vez e outra vez, para que a dor deixe de ser constante e vire um raro visitante, aquele que nunca desaparece, mas nos perturba com uma frequência suportável dentro de um suspiro.
(*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, agente literário, publicitário, gestor editorial e influenciador digital. Dez livros publicados. Membro benemérito "ad honorem" do Centro Cultural, Literário e Artístico de PORTUGAL. Contato: autoreugeniosantana9@gmail.com e (41) 99547-0100 WhatsApp