sábado, 24 de abril de 2021

OS CÁTAROS E A PRÁTICA CRISTÃ COMPATÍVEL COM OS ENSINAMENTOS DO MESTRE (*)

Montanhas escarpadas com misteriosos castelos no topo, tão misturados às rochas que só se percebe sua existência quando se chega bem perto. Essa é uma imagem comum em Languedoc-Roussilon -sudoeste da França-, mais precisamente da região de Corbiéres, onde estão concentrados castelos cátaros. Em Languedoc encontram-se cidades, vilas, abadias e castelos medievais que guardam marcas profundas da época turbulenta do surgimento e desenvolvimento desses religiosos, em sua arquitetura e nas obras de arte. Os cátaros, ou albigenses, eram os fiéis de uma seita cristã que surgiu na Idade Média e cresceu, particularmente no Languedoc. Eles criticavam a corrupção da Igreja Católica -a que chamavam "a igreja dos lobos"-, discordavam de diversos dogmas e tinham a sua própria hierarquia: bispos e sacerdotes, os "perfeitos", encarregados de dirigir os cultos e promover a catequização. Languedoc, o antigo país de Oc, era praticamente independente nos tempos medievais, até fins do século 12. A região era dividida em condados, que prestavam uma tênue vassalagem a diversos suseranos: os reis da França e de Aragão, o conde de Barcelona, o papa e o conde de Toulouse. O clima de liberdade intelectual e tolerância religiosa reinante, raro nos países cristãos na época, favoreceu a propagação do catarismo, inclusive entre os senhores feudais. Eles apreciavam o fato de a seita rejeitar o pagamento de dízimos à igreja e condenar a atuação política de seus ministros. No início do século 13, preocupado com o progresso acentuado da heresia, o papa Inocêncio 3º ordenou uma cruzada contra ela. Logo formou-se um poderoso exército, integrado por guerreiros de diversos países, atraídos tanto por promessas espirituais -o perdão dos pecados- quanto materiais -o saque e a expropriação dos bens dos cátaros. O rei da França a princípio não participou da cruzada, mas depois assumiu a liderança, de olho na incorporação do Languedoc ao reino (o que acabou acontecendo). A luta durou cerca de 40 anos. E foi sangrenta. Os cátaros resistiram bravamente, mas acabaram derrotados, sendo muitos deles mortos durante as batalhas ou queimados em fogueiras. O local ideal para servir de base à descoberta do país dos cátaros talvez seja Carcassone. Quem vem do litoral do Mediterrâneo pela Autoroute des Deux Mers, descobre-a no horizonte, surgindo como uma autêntica aparição. É um choque impactante. Toda rodeada por dois anéis de poderosas muralhas com 39 torres, Carcassone lembra uma gigantesca nave que se projeta no espaço, sobrepondo-se à paisagem. É uma cidade medieval fortificada, restaurada com perfeição no século 19. Ao caminhar por suas ruelas, becos, praças e arcos, a sensação é de recuo no tempo. Carcassone foi um dos principais centros cátaros. Na sua área central, há muitas obras e monumentos da época. A história do ataque à cidade pelos cruzados no século 13 aparece gravada em alto-relevo na Pedra do Cerco, um dos tesouros da basílica romântico-gótica de St. Nazaire. O Chateau Comtal, fortaleza dentro da cidade, com muralhas e fossos, foi o último reduto de defesa. Um tour guiado (gratuito) é a melhor forma de conhecê-lo. Outra boa pedida também é visitar o museu Lapidaire, com sua interessante coleção de antiguidades romanas e medievais. Mas o programa principal mesmo é vaguear pela cidade e pelo alto das muralhas, deixando-se envolver pela magia do local. E à noite sair da cidade, afastar-se uns 500 metros ou 600 metros e contemplar as muralhas iluminadas, um quadro único de beleza e majestade. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor editorial. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

sábado, 17 de abril de 2021

UM PORTFÓLIO MANCHADO DE SANGUE NO PLANETAZUL (*)

Talvez em toda a história da humanidade nunca tenhamos presenciado absurdos sobrepostos com tanta veemência como nos dias atuais. O homem se perde nos seus limites diários e o respeito pela vida e suas belezas é colocado em segundo plano diante da ambição mascarada de ser melhor e melhor. Sem importar-se com os meios desde que o fim seja palpável e prazeroso o suficiente para sobressair-se em relação ao próximo. Somos hipócritas, falsos detentores da verdade, e principalmente, propagadores do rancor e da individualidade doentia. Os problemas crônicos do mundo abrangem fatores além das nacionalidades, religiões e políticas governamentais. É um câncer populacional que exponencialmente evoca o racismo, o machismo, a intolerância religiosa, o desprezo pela igualdade social e a corrupção como forma de resposta para o simples fato de há muito não sermos capazes de amar. Salvem raríssimas exceções, grupos não estão interessados em fazer a diferença, e sim galgar status quo – ter os 15 minutos de fama. Não importa se fulano foi flagrado traindo ciclana ou se a novela a mostrou uma cena mais provocativa que a novela b. Tudo aquilo que queremos é a janela escancarada para podermos compartilhar uma opinião. Para sermos ouvidos. Desconhecemos política do mesmo modo que a conhecemos como arma para estabelecer laços e desfazer supostas amizades quando buscamos simplesmente mostrar – a minha voz chega mais longe que a sua. Direitos humanos? Usamos quando convém. Meio ambiente? Quando rende elogios dos amigos e acrescenta para o portfólio. Sujos dos pés até a cabeça de falsas verdades e meias mentiras, dançamos ao som de uma trilha sonora particular e que age e reage conforme os nossos sentimentos e necessidades. Hipócritas! Todos somos! Certas vezes dura apenas um instante e um instante pode ser o começo ou pode ser tudo. A esperança. Existirá luz no túnel estruturado pela lei do mais forte? O ser humano permanece na escala evolutiva e superando problemas adversos há séculos, mas enquanto no passado os problemas eram postos na ponta de espadas por ideais, hoje usamos os dedos e a voz para representar um intelecto superior e quase divino: o certo. Errados são os meros mortais que se preocupam com os meios e toda essa baboseira chamada humanidade. (*) EUGENIO SANTANA é Escritor, Jornalista, Ensaísta,Superintendente de Imprensa, Agente literário, Biógrafo, Copidesque e Gestor em RH. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

sábado, 10 de abril de 2021

A SOMBRA DAS AUSÊNCIAS: O ESQUECIMENTO, A FACE OCULTA, O DESCONHECIDO, O GRANDE VAZIO (*)

O ar me trouxe nas tardes côncavas um bramido ou o eco de um bramido desolado. Sei que na sombra há Outro, cuja sorte é fatigar as longas solidões que tecem e destecem este Hades, e ansiar pelo meu sangue e devorar a minha morte. Nós e a nossa sombra, vida e morte, calor e frio. O som e o silêncio. A ação e a imobilidade. O medo e a coragem. A memória e o esquecimento. Desde Heráclito, que nos viu naufragar nas corredeiras do tempo, até Albert Einstein, a antimatéria, os buracos negros estilhaçados, orações e guerras, no precário equilíbrio da selva, à beira do vazio. Encarcerados nos inconcebíveis labirintos da razão, buscamos o que, na verdade, nós mesmos temos destruído, nas ruínas indecifráveis de uma História escrita somente pela mão arrogante dos vencedores. Quando morre alguém, desaparecem para sempre algumas informações exclusivas. A imagem de um cachorro correndo na neve, junto à janela do trem. A respiração ofegante da mulher amada, no vértice do prazer. Um gemido incontido. O aroma insubstituível do desejo, na mistura única de perfume e suor. A chave abandonada no fundo da gaveta, que jamais voltará a abrir misteriosa porta agora ignorada. A máscara alheia de dor e sofrimento, registrada durante um momento íntimo de conflito. Com o desaparecimento de uma pessoa, - anônima ou ilustre, não importa - esvaem-se dados singulares, peças ínfimas do cotidiano que jamais poderemos repor. Infelizmente, porém, a morte das pessoas é inevitável. Haverá mortes inevitáveis? Talvez pudéssemos evitar a morte diária de 199 espécies. Também temos sido responsáveis ou co-responsáveis pela morte prematura e desnecessária de línguas, culturas e povos. Mais de 6 mil línguas afundaram nas areias movediças do tempo. E as inumeráveis culturas? E os povos? Os astecas, por exemplo, foram pisoteados pelas ilusões da lenda e pelas patas dos cavalos de Hernán Cortez. O que ficou da sua extensa sabedoria lembra os escombros de um grande terremoto. Os tehotihuacanos viviam de maneira organizada e construíram pirâmides que apontavam para a eternidade. Sumiram na madrugada dos desmatamentos e nos deixaram apenas paredes vazias, desceram para o sul e se embrenharam nas florestas, levando com eles seus conhecimentos maravilhosos e se transformando numa imperdoável ausência. Os incas, assaltados e humilhados pelas tropas de Francisco Pizarro, subiram a cordilheira e se esconderam no mundo miserável do sonho induzido. Nos outros continentes, dramas e tragédias se repetem. Muita informação desapareceu com a Babilônia de Nabucodonosor. Entre o Tigre e o Eufrates, os mistérios da Mesopotômia viraram pó. A cultura dos persas foi varrida pelos exércitos de Alexandre, o Grande, mas também perdemos referências da própria Macedônia - e nem sabemos ao certo como morreu o seu maior guerreiro. Às margens do Nilo ficaram enterrados os segredos do antigo Egito, dos quais temos somente vestígios como as pirâmides e a esfinge. No Mar Egeu submergiram os minóicos, com seus minotauros e seus navios de guerra. Os ardis do destino e a ferocidade dos homens apagaram as pegadas de assírios e mongóis, e dos tempos anteriores à palavra escrita nos chegam pálidos relatos de gregos e troianos. Mais recentemente, o esquecimento engoliu incontáveis fatos e registros, na América Latina, referentes às ditaduras militares dos anos 60 e 70. Muita gente também já se esqueceu dos crimes hediondos cometidos em nome do socialismo, seja na falecida União Soviética, seja na China, em Cuba, na Coréia do Norte ou na antiga Alemanha Oriental, para citar uns poucos exemplos. Ao nosso ilimitado desconhecimento, somam-se as perdas, o que resvalou e se foi, pela ação predatória ou simplesmente pelo esquecimento. Cresce assim, constantemente, a sombra das ausências - da qual talvez se alimente a Divindade. O esquecimento, também é uma forma de memória. O seu vago porão. A outra face oculta da moeda. É possível que Deus, no final das contas, seja de fato apenas o esquecimento, a face oculta, o desconhecido, o grande vazio que vai nos suceder na imprevisível noite dos séculos. (*) EUGENIO SANTANA é Escritor, Jornalista, Ensaísta, Diretor de Redação de Revistas, Agente literário, Biógrafo, Blogueiro e Gestor em RH. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

terça-feira, 6 de abril de 2021

RARAS SÃO AS PESSOAS QUE RECONHECEM O SEU TALENTO NESTA EXISTÊNCIA EFÊMERA

Agradeça se elas chegar e a ocupar os cinco dedos de uma mão. E geralmente, pelo menos uma dessas pessoas será nossa mãe ou nosso pai. Mas sinta-se abençoado se você tem alguém que entende seu olhar. Que te ama mesmo quando você se esquece das próprias virtudes. Quando você tem alguém que dispensa saber suas explicações, tenha sempre por perto. (Escritor/jornalista/ensaísta EUGENIO SANTANA - (41) 9.9909-8795 WhatsApp)

A MAGIA INDECIFRÁVEL DO SEU OLHAR...

Entendo que é possível olhar nos olhos de alguém e de súbito saber que a vida será impossível sem eles. Saber que a voz da pessoa pode fazer seu coração falhar, e que a companhia dessa pessoa é tudo que sua felicidade pode desejar, e que a ausência dela deixará sua alma solitária, desolada e perdida. (Escritor/jornalista/ensaísta Eugenio Santana - Imagem e Palavra)

A VIAGEM POR DENTRO DOS NOSSOS MANUSCRITOS...

Fazemos esta viagem juntos. Como estão distantes os outros passageiros! Estarão no mesmo trem? Em que vagão? Na capota do carro? A bordo do avião? Fazemos esta viagem juntos por dentro dos nossos manuscritos – mal-escritos? No mais, o resto é a separação, a ruptura, o inter/dito. Escritores e jornalistas são ânforas com sede. (Escritor/jornalista, ensaísta EUGENIO SANTANA, FRC)

FILHOS(AS)...

Uma filha, brasiliense; a outra, paulista; um filho, fluminense; e o outro, mineirinho. Mas, por incrível que pareça, já constatei que os meus 14 "FILHOS/LIVROS", me amam mais e reclamam menos. Revelação inadiável porquê sou AUTÊNTICO. (Escritor/jornalista/ensaísta EUGENIO SANTANA)

quarta-feira, 31 de março de 2021

ANALOGIA ENTRE AS PANDEMIAS: GRIPE ESPANHOLA E A COVID-19 (*)

O ano de 2020 iniciou-se longe da ideia de que haveria uma pandemia. Esta que se espalhou rapidamente pelo mundo e trouxe dúvidas, incertezas, caos e mortes. Quando outras epidemias e pandemias se espalharam pelo mundo as pessoas estavam em situações similares. É o caso da grande gripe espanhola, também conhecida como a gripe de 1918. A chamada gripe espanhola que recebeu esse nome porque acreditava-se que o vírus teria surgido na Espanha, dizimou de 50 a 100 milhões de pessoas. Foi chamada também de “bailarina”, porque dançava e se disseminava em grandes escalas. Foi cunhada principalmente por gripe espanhola pelo fato de que a Espanha se manteve neutra durante a Primeira Guerra Mundial, permitindo que a imprensa divulgasse a respeito da peste. Acredita-se que uma das formas da disseminação do vírus tenha sido intensificada pelos soldados que retornavam das trincheiras. Espalhou-se das estações ferroviárias ao centro das cidades, depois aos subúrbios e ao campo. O livro “A Bailarina da Morte” escrito pela historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, traz aspectos inéditos e marcantes da gripe espanhola. Entretanto, a abordagem vai além do que foi a gripe espanhola no mundo e no Brasil. As escritoras explicam também que tanto com a gripe espanhola quanto a covid-19, a primeira reação a uma doença pública é a negação. “Toda doença conta uma história. Toda doença contagiosa é também um evento social. No começo, a peste é quase sempre recepcionada com grandes doses de negação.” Um dos aspectos que as autoras chamam atenção do leitor no livro é a respeito das dúvidas e das incertezas que as grandes pandemias geraram nos cidadãos. Dessa forma, muitas pessoas se viam cercadas de incerteza por se tratar de uma doença desconhecida e sem muitas informações sobre o contágio.. Segundo as autoras explicam, quando a gripe espanhola se instalou no Brasil houve um colapso. O vírus invadiu o país, atingindo principalmente as áreas urbanas. Assim como a atual pandemia, faltava médicos preparados, insumos e macas para tratar os doentes. A segunda onda da gripe espanhola também foi a mais letal. A situação se agrava tanto que começava a surgir nas capas de jornais estrangeiros como a gripe espanhola estava assolando o Brasil. As mortes no país chegaram a 35 mil. O livro “Contágio” do escritor norte-americano David Quammen que foi lançado em 2012 é uma obra que traz questões aprofundadas de como infecções que começam no reino animal e migram para os seres humanos. Mesmo tendo sido lançado anos atrás, "Contágio" ganhou novas edições atualmente. Apesar das obras de Albert Camus “A peste” e a de Gabriel Gárcia Márquez” Amores no tempo do cólera” se tratarem de romances, ambas também tratam de pandemias que marcaram a humanidade. Os livros trazem a importância da ciência no enfrentamento de pandemias. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor editorial. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

sexta-feira, 26 de março de 2021

AMOR. TEMPO. MORTE: É COMPLEXO DEIXAR UM ENIGMA DAQUILO QUE SOMOS (*)

Sentado em um velho tamborete de madeira, cercado por mosquitos ávidos pelo calor úmido que sai do bafo dos convalescentes, observo o universo ao meu redor. Não posso ser indiferente ao que vejo, ao mesmo tempo que não devo agir com intromissão. Não me cabe fazer perguntas indiscretas, investigar um passado cheio de reentrâncias capazes de trazer ao presente lembranças, saudades e principalmente dores. A sensação de cansaço que o tempo nos faz carregar quando ficamos velhos, nos dá a impressão que podemos tudo esconder, visto que esquecer é privilégio de alguns que se vêem atacados pela demência. Não é tão fácil deixar oculto aquilo que somos, principalmente quando pomos nossa alma nas paredes, em exibição. Quando se fala em velhice é difícil dissociar esta fase, da busca pela aproximação de um ser supremo que possa trazer alento às mais terríveis dores. Na cultura cristã ocidental a presença da imagem de Deus, seja ele representado por Jesus Cristo, Maria ou qualquer santo, é algo comum na vida cotidiana das pessoas. O catolicismo e o protestantismo se mostram de forma marcante, mesmo que o indivíduo sequer frequente igrejas ou argumente que não segue religião. Na pequena área de entrada de uma casa pobre, encontra-se em seu leito de dor, dona Joana. Nas paredes amarelas, mal rebocadas, vejo um deus que é três, representado por um homem mais velho, outro mais moço e uma criança, encimados por uma pomba que irradia luz. Na segunda parede que compõe o cubículo, adornadas em madeira, leio frases bíblicas contendo o nome de Deus escrito nela. Na terceira parede está Maria, representando a face feminina de Deus. Na quarta parede está Santo Onofre, um eremita que enquanto vivo, teve comportamento semelhante ao de um deus. O que pode estar por trás desta marcante presença que se mostra com diferentes faces? O que busca o homem quando exibe em suas paredes, o mais próximo possível de seus olhos, os símbolos de uma divindade? Busca a luz irradiada pela pomba; a sabedoria das palavras entalhadas na madeira; a proteção cúmplice da bondade da deusa mãe; o exemplo dado por alguém que buscou viver de uma maneira harmoniosa. Compositor de destinos, como diz o poeta, o tempo é senhor absoluto na vida de todos nós. Deitada em sua cama, com as pernas mirradas pelo desuso, dona Dolores aguarda sem ânsia ele passar. Ao seu lado, pendurado na parede, giram sem parar os ponteiros de um relógio antigo, com armação de madeira que resiste aos desgastes que seu dono, o tempo, o faz sofrer. A mulher já velha, cercada de silêncio, ouve o vento soprar nas árvores de uma tarde quente. Acompanhando o som do vento, o pulsar imutável do ponteiro dos segundos não deixa esquecer que o fim está cada vez mais próximo, como uma bomba relógio prestes a chegar em seu momento final. Quantas preces foram feitas aquele deus invisível (que se mostra opressor como tantos outros deuses) durante toda uma vida em busca de melhores dias! Podia ele trazer algo de bom se apenas esperássemos suas dádivas, ou teríamos que desafiar seus ponteiros e correr atrás de coisas melhores? Mas e se ao final, depois desta disputa, percebêssemos que ele nos venceu, tornando-nos seus escravos? Ele sempre vence no final, como um deus imbatível, nos tira o prazer dos pequenos e bons momentos de diversão que deixam de existir quando trocamos o convívio da família pelo dinheiro proporcionado pelo trabalho. Ele nos vence quando estampa em nossa cara as rugas e seus ares de cansaço, marcando como se marca um boi com brasa, para mostrar quem manda nesta difícil relação de poder. Parado na parede ele não para de correr. Corre contra cada um de nós, embora julgamos que corre junto conosco, na busca pela escrita de um destino. Pode ser Paris , um desejo que provavelmente jamais será alcançado. Pode ser uma foto antiga de um sábado se sol na praia com as crianças, que desejamos que aconteça novamente. Pode ser uma simples flor ou paisagem pintadas em óleo sobre tela, representando a beleza. Afinal, esta e o desejo andam de mãos dadas. Sentado em frente ao computador o autor escreve um texto. Acima de sua cabeça, sobre a parede branca, em quadros brancos repousam retratos em branco e preto contando histórias e mostrando rostos. Há o registro de um dia de uma infância vivida na década de oitenta, a ingenuidade, a pureza que só crianças possuem em seus semblantes assustados em poses para a foto. Há um mosaico contendo sete pessoas diferentes, cada uma ocupando um espaço de grande importância na vida de quem o montou. Há um registro de um dia de sol, em um fevereiro qualquer, quando se viu o mar pela primeira vez. Inesquecível lembrança que nem precisava ser emoldurada, dada a grandiosidade do ocorrido. Há o registro de um dia qualquer , sentando em frente a faculdade, onde viveu grandes momentos felizes de sua vida. Há o registro de seu próprio rosto, repetido diversas vezes, em outras duas fotos. O que elas querem dizer? Talvez representem o desejo de ser lembrado, jamais ser esquecido por si próprio. Assim como há também o desejo de voltar aos dias de infância com sua ingenuidade e memórias de um tempo de amor. Há o desejo de não esquecer a importância de ver o mar pela primeira vez. Há o desejo de olhar para as sete pessoas mais importantes de sua vida. E por fim, há o desejo de imaginar coisas e lugares que ainda podemos ter ou visitar, seja a beleza de uma flor em um quadro ou a Torre Eifel em Paris, que pode tornar-se possível. O que as paredes dizem sobre você? Talvez cada pessoa sequer perceba aquilo que busca, mas inconscientemente traz para o externo, e pendura em suas paredes, aquilo que mais almeja e cultiva. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor em RH. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

segunda-feira, 8 de março de 2021

EU SUBESTIMEI AS PAREDES DA ALMA EM OUTROS CORPOS, OUTRAS VOZES... (*)

A cilada maior é acreditarmos que as armadilhas estão sempre fora de nós, num mundo que temos por cruel e desumano. Ora, por muito que nos custe, nós somos também esse mundo. E as armadilhas que pensávamos exteriores residem profundamente dentro de nós. Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu o nosso próprio olhar. Precisamos de passar um programa antivírus pelo nosso hardware mental. Escolhi falar dessas ratoeiras interiores que nos convertem em nômades deambulando entre ecos e sombras. Uma das primeiras armadilhas interiores é aquilo que chamamos de “realidade”. Falo, é claro, da ideia de realidade que atua como a grande fiscalizadora do nosso pensamento. O maior desafio é sermos capazes de não ficar aprisionados nesse recinto que uns chamam de “razão”, outros de “bom-senso”. A realidade é uma construção social e é, frequentemente, demasiado real para ser verdadeira. Quando Ho Chi Minh saiu da prisão e lhe perguntaram como conseguiu escrever versos tão cheios de ternura numa prisão tão desumana ele respondeu: “Eu desvalorizei as paredes”. Essa lição se converteu num lema da minha conduta. Ho Chi Minh ensinou a si próprio a ler para além dos muros da prisão. Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher entre sentidos visíveis e invisíveis. É ensinar a pensar no sentido original da palavra “pensar” que significava “curar” ou “tratar” um ferimento. Temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar de doenças de que padece. Uma das prescrições médicas é mantermos a habilidade da transcendência, recusando ficar pelo que é imediatamente perceptível. Isso implica a aplicação de um medicamento chamado inquietação crítica. Significa permitir que a luz da literatura entre na casa do pensamento. A mais perigosa armadilha é aquela que possui a aparência de uma ferramenta de emancipação. Uma dessas ciladas é a ideia de que nós, seres humanos, possuímos uma identidade essencial: somos o que somos porque estamos geneticamente programados. Ser-se mulher, homem, branco, negro, velho ou criança, ser-se doente ou infeliz, tudo isso surge como condição inscrita no DNA. Essas categorias parecem provir apenas da Natureza. A nossa existência resultaria, assim, apenas de uma leitura de um código de bases e núcleos improváveis. Esta biologização da identidade é uma capciosa armadilha. Simone de Beauvoir disse: a verdadeira natureza humana é não ter natureza nenhuma. Com isso ela combatia a ideia estereotipada da identidade. Aquilo que somos não é o simples cumprir de um destino programado nos cromossomas, mas a realização de um ser que se constrói em trocas com os outros e com a realidade envolvente. A imensa felicidade que a escrita me deu foi a de poder viajar por entre categorias existenciais. Na realidade, de pouco vale a leitura se ela não nos fizer transitar de vidas. De pouco vale escrever ou ler se não nos deixarmos dissolver por outras identidades e não reacordarmos em outros corpos, outras vozes. A questão não é apenas do domínio de técnicas de decifração do alfabeto. Trata-se, sim, de possuirmos instrumentos para sermos felizes. E o segredo é estar disponível para que outras lógicas nos habitem, é visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades. É fácil sermos tolerantes com os que são diferentes. É um pouco mais difícil sermos solidários com os outros. Difícil é sermos outros, difícil mesmo é sermos os outros. Uma terceira armadilha é pensar que a sabedoria tem residência exclusiva no universo da escrita. É olhar a oralidade como um sinal de menoridade. Com alguma condescendência, é usual pensar a oralidade como patrimônio tradicional que deve ser preservado. O culto de uma sabedoria livresca pode contrariar o propósito da cultura e do livro que é o da descoberta da alteridade. Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto uni/verso. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não lêem livros. Mas o deficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor em RH. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

sábado, 6 de março de 2021

O QUE SIGNIFICA SER ESCRITOR? (*)

Além de refletirem sobre a literatura e seus processos, inúmeros autores se debruçam sobre a própria existência, questionando o que significa, afinal, ser escritor. Trata-se de um tema bastante subjetivo que gera respostas muito diferentes, algumas mesmo diametralmente opostas. Alguns se posicionam do lado de Pessoa, quando afirmou que "o poeta é um fingidor". Para eles, escrever é ficcionar mundos, inventar ou reinventar emoções e, por isso mesmo, pode ser visto como uma forma de mentir. Sem dúvida que um dos temas favoritos de muitos autores é o próprio ato da escrita. Por vezes, é encarado como um refúgio, um escape, uma forma de fugir do mundo ou, pelo menos, de lidar com ele. Outras vezes, é visto como um desajuste do sujeito perante a realidade comum. Aborrecido ou decepcionado com aquilo que o rodeia, o escritor sente a necessidade de inventar novas vidas e experiências através da literatura. Embora seja um trabalho laborioso, e não raramente sofrido, o ofício da escrita nem sempre é recompensado com dinheiro, fama ou poder. Mesmo assim, através das palavras, alguns escritores conseguem vencer a própria morte, se eternizando em suas obras. O escritor tem uma incapacidade congénita para contar a verdade e é por isso que escreve ficção. O escritor é uma das criaturas mais neuróticas que existem: ele não sabe viver ao vivo, ele vive através de reflexos, espelhos, imagens, palavras. O não-real, o não-palpável. Para outros autores, aquele que escreve é dotado de uma maneira singular de ver o mundo, que precisa exprimir através das letras. Ser escritor é, assim, um meio de dar a conhecer a sua imaginação, de apresentar outras realidades possíveis ao leitor. Esta visão contraria a imagem do escritor como um sujeito "maldito", condenado à prisão da criação literária. Pelo contrário, trata-se de alguém "iluminado", que enxerga através de uma lente poética capaz de transformar tudo ao seu redor. Escritor: não somente uma certa maneira especial de ver as coisas, senão também uma impossibilidade de as ver de qualquer outra maneira. Ainda sobre o poder transformador das palavras, vale a pena lembrar que alguns escritores também encaram a literatura como uma responsabilidade. Acreditam que escrever deve ser sinônimo de inovar, de intervir na vida pública e social, de quebrar paradigmas. Deste modo, o escritor é considerado alguém que "vê mais adiante", e que por isso choca, tentando sempre dizer aquilo que não pode, ou não deve, ser dito. A criação literária lida diretamente com as emoções humanas, procurando retratar as mais diversas facetas da nossa experiência. Muitos autores acreditam que para escrever é necessário conhecer o sofrimento de perto, ter passado vários tipos de obstáculos e estar disposto a mostrar a sua dor. Tudo que você precisa fazer é se sentar em frente de seu computador e sangrar. Nenhum escritor é bom a não ser que tenha sofrido. Outro aspecto que sublinham é que a escrita é um trabalho contínuo, permanente, onde sempre devemos estar aprendendo, mudando e nos aprimorando. Para isso, é necessário ler bastante e continuar praticando: escrever muito para escrever cada vez melhor. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor editorial. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

quarta-feira, 3 de março de 2021

QUEM TERIA CORAGEM DE DIZER HOJE: EU SOU FELIZ! (*)

Disse Albert Camus: "A felicidade, é ao final, uma atividade original hoje em dia." O livro "O mito de Sísifo", causou estranhamento com sua última parte. Sísifo feliz, era o escândalo de Camus. Feliz-vivo, feliz-morto, feliz-por-voltar-a-vida, feliz-quando-vê-a-pedra-rolar. Cada livro se presta a mil leituras, no caso de "O mito de Sísifo" essa proposta sofreu uma redução considerável. Na bipolaridade da guerra fria, na frança pós-guerra, ou se estava do lado do capital, ou do lado da revolução. A obra posterior de Camus também sofreu um processo redutivo de análise, sempre lido a luz do capital ou da revolução (veja as críticas dirigidas ao "O homem revoltado"). Quase na mesma época do lançamento de "O mito de Sísifo", Walter Benjamin escrevia nas "teses sobre a história" acerca da revolução que se orienta para a tristeza dos antepassados e que por revolta contra essa tristeza quer se efetivar, e a revolução que se orienta para a felicidade dos descendentes livres. Quase 100 anos antes de Benjamin e de Camus, esta mesma proposta foi feita por o Walt Whitman. Na introdução de "Folhas de Relva" o autor fala que a América recebe uma herança de um descendente robusto que virá. A proposta é então: não se oriente pelo passado de tristeza, mas sim pelo futuro de alegria. Mas em todos estes autores este futuro de alegria já pode ser acessado agora: na "agoridade" do presente. Neste momento cheio e robusto que agora se apresenta a nós. Mas como se é construída a tristeza e a felicidade? Não é um demônio externo a nós que nos faz tristes ou felizes, nem nós mesmos fora do mundo. Pense: acordar-trabalho-almoço-trabalho-casa-dormir-acordar-... Todo dia, todo ano, por uma vida. É esta base material que nos torna tristes. É não tornar-se cheio no agora se orientando para uma felicidade futura, e que se acessa agora. Mas e aquela história? Acordar-trabalho-almoço-trabalho-casa-dormir-acordar-... Sim, é revoltante, sim, deve-se mudar essa rotina que esvazia, mas, sim, há felicidade agora. A revolução é pautada na mudança das bases materiais de exploração e contradição. Mas a própria revolução tem suas próprias bases materiais. Esta base material é toda-a-exploração-do-mundo e a felicidade-potência dos agentes da revolução. Esta revolução não tem nenhuma base metafísica. A dor, a exploração, é sentida no corpo, nas mil sensações diárias do trabalhador. A felicidade também, sentida no corpo, nas mil sensações do trabalhador. Mas o revolucionário, mesmo sentindo toda a infelicidade, é um amante, amante feliz da vida que virá e que ele, agora, experimenta. É claro que esta felicidade é custosa. É preciso muita energia para sustentá-la, porque ninguém diz hoje de forma inocente, sou feliz. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor editorial. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

A EQUIVOCADA APOSTA EM RECEITAS PRONTAS AMOROSAS (*)

Qualquer relação emocional tem seu funcionamento baseado em contratos e acordos, quer sejam eles explícitos ou implícitos. Acontece que a maioria desses acordos e contratos são idealizados apenas dentro da nossa cabeça. Em geral, queremos a companhia, o acolhimento e a devoção do outro e estabelecemos um formato para que a convivência se encaixe perfeitamente em nossas expectativas. Por alguma misteriosa razão, esquecemos de informar ao outro sobre nossas expectativas. Ao contrário, acenamos com promessas de afeto e completude, porque cremos que se o outro acreditar que encontrará em nós seus sonhos de realização emocional, também se disporá a realizar os nossos sonhos. Estabelece-se então, um pacto perfeitamente delineado para aplacar a necessidade que temos de preencher nossos infinitos vazios. Celebramos um pacto unilateral, velado. Mantemos em segredo nossas reais ambições e ficamos torcendo para que o outro as adivinhe. Tratamos nossa vida como se fosse uma mesa de jogo; apostamos em receitas prontas, em saídas milagrosas para nossa solidão. Trocamos nossa individualidade por companhia casual. Investimos em relacionamentos supostamente estáveis, sonhando permanecermos livres. E, assim que percebemos que ninguém é capaz de adivinhar nossos desejos, ficamos magoados, tristes, rancorosos. E, culpamos o outro pela nossa infelicidade. O que queremos afinal? Será que alguns de nós sabe essa resposta? Pra sermos sinceros, poderíamos começar revelando nossas sombras, nossas verdadeiras intenções. Por alguns dias isso bastaria. Bastaria para atrairmos à nossa mesa, jogadores cujas cartas fossem suficientes para aturar nossos blefes. Jogo legalizado, limpo, honesto. Depois de alguns dias, pode ser que resolvêssemos trocar as cartas, mudar o jogo, trocar as regras. Mas, a essa altura, nosso parceiro de mesa já estaria mais familiarizado com a nossa loucura funcional; caberia a ele continuar no jogo ou se levantar e partir para outra. Ahhh, mas a nossa sinceridade não suportaria tanta honestidade. Além disso, nossos objetivos são transitórios, efêmeros, fugazes. Queremos uma viagem libertadora, qual uma expedição à Antártica, mas não abrimos mão de uma equipe de apoio que nos socorra, caso mudemos de ideia e passemos a a ansiar por camas quentes, banhos mornos e segurança. Nossa natureza é narcisista, nossos planos não incluem o sucesso alheio, nossas projeções revelam nosso caráter individualista. Queremos sempre o que ainda não temos. Até pode ser que exista uma esperança para o nosso futuro. Mas, antes de embarcarmos na próxima fantasia, quem sabe não arranjemos coragem para mostrar nossa verdadeira cara. Quem sabe não sejamos capazes de abrir mão do conforto da aceitação e revelemos na íntegra quem somos nas entrelinhas. Se alguém se arriscar a se aventurar conosco, será porque terá visto em nós algo que vale a pena, ainda que não seja perfeito ou ideal. Aquele que olhar para nossa real essência e, ainda assim, for capaz de nos desejar, será digno de nós. Digno de visitar nossa confusão, de ser bem-vindo à nossa solidão, para fazer parte, mergulhar conosco e encontrar a paz onde, no fim das contas mora a nossa verdade. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor editorial. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

MEMÓRIAS DE ADRIANO

Mais uma vez, não é nada disso: Marguerite Yourcenar é capaz de apreender delicada e cuidadosamente a mente daquele que lhe desperta profunda admiração. O uso atento, preciso e fluido das palavras é acompanhado de um forte compromisso com os fatos históricos, que a escritora não desrespeita em momento algum. “Memórias de Adriano” não é uma simulação, como se a escritora se vestisse de imperador romano e o interpretasse como em um teatro. Ela lhe rouba a voz na pré-condição de devolvê-lo à vida novamente. Não por acaso essa foi a mais bem sucedida obra do gênero na história da literatura. (Writer And Journalist Eugenio Santana, FRC)

terça-feira, 2 de março de 2021

SOMOS TODOS TRAIDORES...

Permita-me perguntar: você já foi traído de alguma forma? Não poucos de nós já foram traídos. Só os amigos nos traem; os inimigos nos decepcionam. Só as pessoas a quem nos doamos muito podem nos ferir tanto. E você, já traiu? Talvez fiquemos inibidos em responder. Mas, sinceramente, todos nós já traímos! E, o que é pior, traímos aquilo que é mais relevante para ter uma mente livre e uma emoção saudável. Traímos nosso sono, nossos finais de semana, nossas férias, nosso relaxamento. Traímos o tempo precioso que poderíamos gastar conosco, fazendo uma higiene mental, reciclando nossas falsas verdades, nutrindo-nos com prazer de viver. Somos todos traidores. (Escritor/Jornalista/Ensaísta EUGENIO SANTANA - IMAGEM E PALAVRA )

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

ESCRITOR SEM ROSTO (*)

Nascido em Long Island, o escritor sem rosto estudou engenharia aeronáutica na Universidade de Cornell, deixando o curso ao ser convocado pela Marinha. Nas Forças Armadas tirou as fotos que até hoje são divulgadas como as únicas do autor (a Marinha forneceu outros materiais para seus livros). Quando voltou do serviço militar, trocou seus estudos para inglês em Cornell e teve aulas com o escritor Vladimir Nabokov, autor de Lolita. Após um curto período trabalhando com escrita técnica, entrou para o mundo da ficção e desapareceu por completo. Se por um lado faltam informações a seu respeito, por outro sobram especulações e teorias levemente delirantes sobre Thomas Pynchon. A mais inusitada afirma que o escritor seria o novo nome adotado por Jim Morrison (1943-1971), vocalista da banda californiana The Doors, vivo e oculto sob outra identidade — afinal, ambos parecem ter os mesmos interesses em física, ocultismo, matemática e cultura pop. Outros afirmam ser Bob Dylan ou ainda o terrorista Unabomber o homem por trás da figura misteriosa de Pynchon, e por aí vai. O culto a sua personalidade acaba sendo um magnífico diferencial na literatura contemporânea, mesmo entre notórios reclusos, como J. D. Salinger, de O Apanhador no Campo de Centeio, J. M. Coetzee, prêmio Nobel sul-africano, e os nacionais Dalton Trevisan e Rubem Fonseca. Este último, aliás, é amigo de Pynchon. Para Fonseca, ele escreveu o prefácio da edição americana da coletânea de contos O Cobrador. Não é de todo raro encontrar nos Estados Unidos e em outros países grupos de leitores devotos de Pynchon, reunidos para dissecar cada linha da obra do escritor e verificar seus mecanismos ocultos. O editor e escritor gaúcho Antônio Xerxenesky é um desses leitores aficionados pela obra do escritor, já tendo lido todos os seus livros, incluindo a coletânea de contos Slow Learner, cuja introdução contém as poucas informações oficiais disponíveis sobre sua infância e juventude. Para Xerxenesky, Pynchon ganha pouco se expondo: “A obra dele ganha muito com esse silêncio midiático, com referências obscuras, e perderia a graça se ele precisasse vir a público toda vez se explicar. Certamente, não haveriam leitores reunindo-se ao redor de seus livros se fosse assim”. Embora sua figura anônima seja fascinante, o editor afirma que ela não se sustentaria sem a qualidade excepcional do texto. “A gente fica curioso para descobrir quem é a mente doentia que criou esses universos tão fenomenais, e não podemos, e a graça está nisso.” O editor de Pynchon no Brasil, André Conti, da Companhia das Letras, nunca entrou em contato com o escritor, tratando tudo com seus tradutores (leia mais na matéria ao lado) e agentes. Para ele, a obscuridade da persona do autor de Contra o Dia é condizente com o universo criado por ele. “Se há algo em comum às obras do Pynchon é o fato de tudo ser permeado por um clima de desconfiança, paranoia sobre entidades conspiratórias. E nada melhor para falar sobre isso do que um autor recluso, igualmente desconfiado. É como se ele vivesse dentro daquilo, e os leitores se empolgam em suas vocações detetivescas para tentar descobrir não só significados ocultos em seus livros mas também qualquer informação sobre sua figura”. Sobre sua reclsuão, Conti conclui com um conhecido clichê literário que não poderia ser melhor aplicado a Pynchon: “O livro precisa falar por si só”." (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor editorial. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

NÉVOA DO ESQUECIMENTO...

Com o tempo, as imagens apagam-se como se fossem velhos retratos carcomidos pelo desgaste inevitável. Por trás das pupilas mil sonhos desfeitos, alguns totalmente mortos, cinzas jogadas ao vento. A asa do tempo cobriu meus devaneios perdidos e soterrou nesta vida a esperança de dias melhores e promissores. A vastidão sempre foi minha residência fixa. Tudo desvanece com o retinir dos sinos eternos. A névoa do esquecimento tomou conta de quase todas as minhas lembranças. Tudo regenera em minha memória alada, só os grilhões do eterno voltar nutrem a terra ressequida do meu coração. As asas da dor abriram-se sobre intermináveis dias da minha vida. Só a senhora de cabelos de nuvens de algodão há de me tirar do mundo das sombras. Eternamente voltaremos das cinzas. (Escritor/jornalista/ensaísta Eugenio Santana - Imagem e Palavra)

sábado, 20 de fevereiro de 2021

ANJOS E CÃES NÃO SÃO MUITO DIFERENTES (*)

Charles Bukowski estava mais ou menos com trinta anos quando sofreu uma crise hemorrágica e foi internado praticamente entre a vida e a morte. Até aquele momento, não passava de um contista de poucas publicações em revistas baratas, morava em quartos de hotéis sujos e vivia de pequenos trabalhos manuais. O médico lhe dissera, após a regeneração improvável, que "mais nenhuma gota de álcool, se não você morrerá". A recomendação médica, é claro, foi negligenciada, mas quiseram os deuses lhe dar outra oportunidade de viver pelo menos mais quatro décadas. Ao retornar para casa depois do internamento, Bukowski sentou-se em frente à máquina e recomeçou a escrever como um louco - só que agora, poemas, muitos e muitos poemas. Em suas próprias palavras, depois de ter outra chance de viver, tudo que ele queria era "gritar um pouco", o que classificou como um ato egoísta, mas também como algo inevitável. Desde então, Bukowski começou a tecer a sua reputação como escritor. Nas publicações underground de Los Angeles, seu nome era cultuado. Ele era o rei das "pequenas publicações". Durante a década de setenta e principalmente nos anos oitenta, Bukowski encontrou a fama que sempre almejara. Jean-Paul Sartre lhe chamara de "o maior poeta da América". É certo que Bukowski escrevia poemas desde os 15 anos, e que os seus trabalhos anteriores e posteriores ao internamento não ficaram muito diferentes em relação ao trato com a linguagem ou a algum outro aspecto formal do poema. O que é flagrante e, creio, o que determinou o reconhecimento e a qualidade da poesia de Bukowski após a sua quase morte foi a clareza e a sensibilidade adquiridas e traduzidas por ele diante de um acontecimento dessa natureza. Ao lidar com o seu tema preferido (ele mesmo), soube fazê-lo com a maior honestidade e com maior precisão que antes de ter vivido uma situação limite. Por "ele mesmo" pode-se entender, além da questão biográfica, é claro, um modo de estar no mundo e de vivenciá-lo que, de certa forma, dialogou com muitos e muitos anjos caídos (uma expressão sua) nos Estados Unidos e fora dele. Ao abordar personagens e acontecimentos fora da engrenagem do chamado "sonho americano" (que nada mais é do que a vida comportada da classe média próspera e alienada) a poesia de Bukowski radiografou e apresentou ao mundo o outro lado da vida estadunidense. "Anjos e cães não são / muito diferentes". Este é um verso que abre uma de suas obras-primas, chamada "Uma janela de vidros espelhados". Este é um verso que sintetiza bem a percepção de Bukowski sobre os seres humanos e, no limite, sobre a vida e a poesia. Para Bukowski, o que se considera grande e transcendental pode ser ao mesmo tempo algo corriqueiro, constantemente rechaçado e desprezado pela maioria das pessoas. Fazer um poema sobre os vagabundos que se sentam às duas e meia da tarde numa cafeteria de estimação para ficarem ali tomando café e esperando que o tempo passe, saboreando o escorrer melancólico do dia junto a uma xícara de café, fazer um poema com este tema significa dizer: olha, a vida pode constantemente ser sem graça e desprezível, mas se você tiver um pingo de vontade, um punhado de compaixão pela sua própria existência e a dos outros, você poderá transformar o mais reles acontecimento cotidiano em poesia. Viverá na poesia. Sentirá a poesia enquanto vive, seja em seus melhores momentos, seja em seus piores momentos, mas haverá sempre uma clareza de sentimentos que só a poesia pode proporcionar. Só deste modo conseguirá escrever algo tão simples, honesto e sensível como estes dois versos: you can't beat death but you can beat death in life, sometimes. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor editorial. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com