sábado, 25 de abril de 2020

MESMICE, ZONA DE CONFORTO, ROTINA (*)

Gostar de rotina não é algo ruim. Precisamos dela para nortear nossas vidas, dar linearidade ao nosso cotidiano, nos tirando do caos e auxiliando-nos a dar foco às metas. A rotina é a nossa cura da ressaca, nossa obediência às regras, nossa submissão ao tempo, nossa dose de normalidade diária. Sair da rotina, do óbvio, é um tanto doloroso para algumas pessoas. Arriscar-se numa atividade nova, atrasar-se mais que cinco minutos, um feriado no meio da semana (acredite: há quem não goste nem um pouco de feriado que tire da mesmice de uma semana de trabalho) nem sempre é fácil de encarar. Ainda mais pra quem trabalha com o método da agenda: acordar às seis, ler as notícias acompanhado de uma xícara de café - nem muito quente, nem frio, nem morno: acertar o ponto todas as vezes é crucial e rotineiro, por assim dizer - tomar um banho rápido, vestir-se e chegar no trabalho às oito. Nem sete e cinquenta e dois, nem sete e cinquenta e nove, muito menos oito e um. Oito. Trabalhar incessantemente, voltar pra casa (pelo mesmo caminho de sempre), assistir qualquer porcaria na televisão, dormir. Fim de semana é almoçar na mãe, ir ao cinema, voltar antes que escureça, dormir. Pessoas assim não se permitem experimentar algo novo e ousado, por mais simples que seja. Por mais que a mídia tenha explorado e criticado positivamente aquela peça que está em cartaz todas as quartas, não é digno se dar ao luxo de fazer um programa cultural em plena quarta-feira. Amanhã é quinta, dia de labutar. Às oito em ponto. Por mais que delivery de pizza seja prático, rápido e barato, não custa nada explorar os demais restaurantes da cidade, levar a garota ou o garoto para degustar sushi, comida chinesa, tailandesa, ou churrasco gaúcho, que seja. Algo que não venha engordurado dentro de uma caixa de papelão. Há quem não goste de acampar na praia mas que nunca sequer dormiu dentro de uma barraca e protege-se dos pés à cabeça do sol, da areia e da água salgada que resseca e quebra o cabelo. Tem gente que detesta balada, porque sempre frequentou a mesma casa noturna, que conta sempre com a presença dos mesmos Dj's, sempre com as mesmas pessoas. Há quem não goste de beber mas que nunca bebeu, que não goste de redes sociais e que sempre conservou a velha conta de email no Bol, que não goste de chuva mas que nunca sentiu a deliciosa sensação da água refrescando o corpo num dia de calor infernal, que não gosta de música brasileira mas que nunca se arriscou a ouvir os mestres da MPB - e que, inclusive, critica ferozmente o nosso funk mas que dança de forma frenética ao som do pop e do Hip Hop americano que faz apologia às drogas e ao sexo, com letras tão "proibidonas" quanto as do ritmo carioca. De que vale a vida, penso eu, se não arriscarmos, nos entregarmos ao novo? Ter o coração partido e se fechar para um novo amor, permanecer num emprego que te causa infelicidade mas que garante estabilidade, dormir cedo sempre, nunca se atrasar, ir ao mesmo cinema, frequentar as mesmas praias, estranhar novas amizades: que perda de tempo. Durante muito tempo fui um pouco assim, e confesso que ainda sou paranóico com horários e rotina, mas estou tentando mudar. Reconhecer que a minha bolha é limitada e que a zona de conforto não nos oferece nada mais que conforto é o primeiro passo. Toda revolução sofre um pouco de resistência no ínicio - mesmo que a revolução seja mudar de cafeteria ou de marca de sabão em pó - mas pequenas ações podem resultar em mudanças positivas na nossa vida. Se o café está bem quente, eu acho bom. Se está morno, me incomodo um pouco, mas engulo feliz. Se tem suco, agradeço: mais um dia sem cafeína. Viver metodicamente é não viver, ou viver pela metade. Você por acaso sabe se existe vida após essa aqui? Melhor não desperdiçar. Hortelã pode ser bom, mas há uma infinidade de sabores por aí. (*) EUGENIO SANTANA é Escritor, Jornalista, Gestor editorial, Ensaísta, Redator publicitário, Blogueiro, Biógrafo, Ornitólogo. Onze livros publicados. Autor, entre outros, de "Ventos Fortes, Raízes Profundas", autoajuda, Madras editora. (41) 9.9667-8484 WhatsApp

terça-feira, 7 de abril de 2020

OS PESSEGUEIROS FLORESCEM NO OUTONO (*)

Nem um carro, nem um transeunte, nem um gato, nem um cão. De vez em quando, nuvem de poeira. Por volta das 6 horas, sombras furtivas começarão a esgueirar-se ao longo das altas casas abandonadas. Sombras dobradas ou torcidas, lutando contra o vento selvagem. Dentro em pouco, tudo voltará a ser deserto de pedra e poeira. O inverno vale a pena ser vivido. É de um rigor incomparável. Não nos poupa nada, atormenta-nos, julga-nos. Obriga a nos olharmos bem de frente, no espelho, reduzidos à nossa expressão mais simples, ou seja, a nós mesmos, isto é, à angústia. Os homens que acotovelam as mesas de mármore fingem ver a TV. Silhuetas torcidas se agitam. A locutora sorri para os anjos e anuncia a chuva e o tempo bom. Poderia anunciar o fim do mundo, que os homens não se mexeriam, continuariam assim, como estátuas. São velhos, são nodosos, são oliveiras destacadas da terra. São indiferentes e impassíveis. Invejo-os. E o autor, bem entendido, na justa medida da minha loucura, se estou louco, da minha angústia, se estou angustiado, do meu delírio, se estou delirante. De todas as maneiras, da minha solidão. Estou só. Assim o quis. Detesto as multidões. -- E por que precisa de solidão? -- Na vida de cada um, chegam um momento e uma idade... Tenho quarenta e seis anos... Em que é necessário determinar a rota, fazer o balanço das nossas forças e das nossas fraquezas, das nossas derrotas e das nossas conquistas. Esse momento chegou, para mim. -- Mesmo no plano sentimental? -- Mesmo no plano sentimental. Quanto à alusão, não pense que ela me perturba. -- Pensa escrever outro livro? -- Sem dúvida. -- Um romance? -- Um romance autobiográfico. -- Detalhes? -- Só posso dizer que se intitulará “Os Pessegueiros Florescem no Outono.” -- Onde pensa refugiar-se? -- Não sei ainda, provavelmente em Paris, Barcelona, Veneza, Berlim, Viena ou Nova Iorque... ... A imprensa retira-se. (Janeiro de 2016) Neuroforia, isso não vem no dicionário. Durante três noites, Zoé sumiu. Uma noite voltou tranqüila, um pouco cansada. -- Acabou a neuroforia. Mais tarde, bem mais tarde, ela tentou explicar-me. Vou, por meu lado, tentar traduzir Zöé. Digamos que a neuroforia é uma força incoercível, louca, que nasce em nós, cresce e explode. Então, nada nos pode impedir de ir até ao limite de tudo. E mais além, se for possível. Então, a gente luta, bebe e come, faz o amor e toma drogas, fala e fala ainda. Isso pode durar de dez a cinqüenta horas, até que o doente fique exausto. É a fuga para diante, à frente da angústia. É a chance da última chance. É engolir o tempo e engolir o espaço. E negá-lo. Milhões de homens morrem intatos. Ou seja, pouquíssimos diferentes do que eram ao nascer. Sem terem conhecimento realmente de nada, nem experimentado, nem aprendido. Morrem intatos, sem jamais terem gasto o capital psíquico, a força real, o dinamismo que é dado a cada indivíduo. Um monte de carvão não consumido, que se deixa apodrecer sobre o chão da mina. Esses consumiram a vida. O amor não existe, eu juro. É hora de dizê-lo, de proclamá-lo por cima dos telhados, de anunciá-lo à trombeta. Ou, melhor, minha cara Zöé, o amor não existe senão para alguns. Eis o segredo. E você, com as suas recordações de pesadelo, não faz parte daqueles a quem foi dado o amor. Você, como milhares, como milhões de outros. Como todas as multidões imensas do planeta, que obedecem a reflexos condicionados. Todos alienados pela religião, pela mídia, pela TV, pelo cinema, pela literatura, a boa e a má, que miam a cada minuto, a cada segundo, o amor, sempre o amor. Não há amor, não há milagre para todos esses, desprovidos, condicionados, que vivem redondamente equivocados. O amor, o verdadeiro, é sempre trágico, exaltador. É uma sociedade secreta, cuja iniciação é cruel e complexa. É o que viviam Tristão e Isolda, com a espada no centro do leito. É o que perseguia Dom Quixote nas planícies da Mancha, essa caça à sombra, essa busca exaustiva e raramente triunfante. Donde a necessidade que eu tenho da literatura. É mais fácil e menos perigoso. Estamos tão doentes! A maioria não sabe, mas eu sei. -- Doente de quê, Sr. Mário? -- Não da alma, não da consciência, não do cérebro. Não, é demasiado vago. Doente de ternura, de generosidade, solidariedade e do dom de si mesmo. Doente de Deus, talvez, doente de amor sempre. Doente do corpo de todas as mulheres do mundo. Doente do tempo e doente do espaço na busca infrutífera de transcendência, consciência cósmica e uni/versos paralelos; doente das palavras, quando escrevo e não publico, das carícias, quando amo, dos lençóis, quando durmo. Doente da morte, cara doutora. -- E qual o seu remédio, caro escritor? Não há remédio, a não ser, sempre e sem parar, a contestação e o protesto. Tem de haver orvalhos e vaga-lumes no jardim que velam todas as noites enquanto os outros dormem e têm pesadelos. Tem de haver quem berre, ao vento, as verdades essenciais, quem despedace e quem destrua, quem ponha tudo em causa, minha bela. E não importa que meio, recomendável ou não. O importante é que deixe marcas. -- O senhor é um anarquista, Sr. Mário Lúcio. -- E a senhorita é uma imbecil! A caverna tem isto de bom, é confortável e ao abrigo dos outros. Cada qual pode ficar indefinidamente na sua caverna. É, aliás, o que todo mundo faz ou se esforça por fazer. Só eu resolvi sair da minha caverna, e há muito tempo. Ou, mais exatamente, errar de caverna em caverna, sabendo o que elas são, apreciando provisoriamente o seu conforto, mas sem nunca dormir nelas. Sei agora que as sombras não passam de sombras. Sei que lá fora é dia, mas que no interior das cavernas ainda posso representar e me contar histórias. Não sou mais um idiota. Tudo isto para lhe dizer que não existe pessoa dupla de você ou de quem quer seja. Que somos sós e únicos, e que é preciso acomodar-se a esse estado. Conseqüentemente, tenho ao mesmo tempo a tristeza e o prazer de lhe dizer, de lhe afirmar, de lhe jurar que o amor não existe. Fricciono-me. Sinto-me realmente novo, mudei de pele a neuroforia foi afogada. Volto para o quarto, visto-me. Trouxeram a bandeja com o chá, o doce, as torradas e a manteiga. Sirvo-me, bebo, como, o mundo me pertence. Estou pronto, gentleman bem barbeado e cheirando a lavanda. Zöé guarda a roupa suja na maleta. Termino o meu chá. Zöé pega a maleta, dirige-se para a saída, eu a sigo. Segui-la-ei até ao fim do mundo, e seguirei apenas a ela. Ela acende um cigarro, põe o carro em marcha. – ligue o aquecimento. O navio deixa o porto. É necessário morrer, quando os rostos já não nos fazem sinais, quando as vozes se tornam incompreensíveis. Então, é uma questão de dignidade. Não se morre quando um ser nos abandonou. Morre-se quando nós mesmos nos abandonamos. Estou aqui, não estou aqui. Não sei nada. Em suma, quero anular-me, mas com todas as garantias possíveis. Quero ter a certeza de que estou desertado. Sôo oco, sou um fantasma. E grito para dentro, como um filósofo-de-bolso: a vida é absurda, eu sou absurdo. Ando às voltas dentro das armadilhas da casa de vidro. Zöé, silenciosa, vigia-me. Assiste impassível à minha agonia, como boa conhecedora. Dêem-me garantias e eu me anulo, fico fora de combate. Silêncio. As vozes cochichadoras, destiladora s de bons conselhos, estão mudas. Cabe a mim arranjar-me, só, sempre só. E recomeçar uma vez mais a análise das razões, a procura das causas. Não se trata dos meus livros, mas da minha alma. Não me interessa a literatura, não me interessam os meus livros. “Todos os meus livros por um Reino!” O que eu procuro, é um reino. O que eu preciso é fazer um inventário, uma grande faxina. Jogar fora o que estiver demasiado usado, limpar e só guardar o essencial. Voltar ao essencial, ao absoluto, ao definitivo. Gostaria de ter a meu lado um ser com quem pudesse falar, a quem pudesse comunicar tudo o que vivo, tudo o que experimento. Zöé não basta. Com ela, são sempre monólogos paralelos. E onde está ela? Onde está aquela que viverá comigo todas as aventuras do corpo e do coração? E também do espírito. Aquela que comigo construirá a alta torre da solidão partilhada? Finalmente... Anna Sophia! O mesmo sentimento cada vez que a vejo e a mesma impotência para expressar essa espécie de paralisia que atinge. Poderia amá-la até à eternidade, amá-la até morrer, com todas as pisaduras e todas as feridas do amor. Com todas as ternuras do mundo e todos os impulsos que só esperam para brotar, verdadeiros e fortes. A estrada. Os faróis, os plátanos. Uma luz baça envolve a noite. Talvez vá chover. O silêncio repousado. O da satisfação e da paz. As palavras não significam mais nada. Pulverizaram-se. Recordar. A avareza da Memória. Recordar-se dos momentos, arquivá-los, guardá-los na cabeça... Explodi neste amor. Fiquei reduzido a pó. Mas para ressuscitar, para ressuscitar, enfim. E que tudo agora seja claro e legível. Quero ler-me em livro aberto... Os plátanos, a estrada, os faróis. A neblina branca, dissimulada... Era para melhor renascer. Ressuscitei... Uma transformação teve lugar quando eu já não esperava nada. Quando eu já pedia demissão... O amor que temos a fazer, a inventar. O império que precisamos edificar. Depressa, muito depressa. Precisamos lutar contra o tempo, agarrá-lo em velocidade. Ele é o inimigo. Um amor, isso existe? Existe, mas em estado bruto. É uma pedra, um objeto. E a gente não sabe o que fazer com essa pedra, embora tudo se possa inventar. É preciso dar um sentido ao amor, uma direção. Animá-lo, iluminá-lo. De outra forma, ele fenece, asfixiado pela sua própria inércia... Crer na virtude das palavras por si sós. Mas as palavras não têm virtude, a não ser a que se lhes quer dar. E que se lhes dá por impotência, por ociosidade, por covardia. Também é fácil fazer um filho. Supremo álibi para lutar contra o medo e a solidão. E a morte, também. Para existir por procuração. Para enganar. Um menino, isso permite, por instante, julgar-se imortal. Não mais fingir viver com os outros que fingem viver. Admitir que os meus antigos amores eram falhos, que não passavam de atos de egoísmo e de orgulho. Admitir que aquilo que a que eu chamava de “minha filosofia” nada mais era do que paródia de um pensar rigoroso. Admitir que o que eu escrevi nada mais foi do que o reflexo do carnaval em que vivi. A descrição hábil dessa partida de esconde-esconde de que eu brinco comigo mesmo há quarenta e sete anos, para não me confrontar com a “minha realidade”. Negar-me. Aprender a humildade. Um par de faróis me ilumina e me fustiga. O carro de Anna Sophia acaba de estacionar ao lado do meu. Fico imóvel, paralisado. Ela me vê. E eu, alucinado, vejo-a descer, vir para mim, inclinar-se para mim, beijar-me. E eu soluço. – Anna Sophia, Anna Sophia, meu amor... Os anjos da escuridão... Eles quase me aprisionaram em suas asas insanas e cruéis. (*) EUGENIO SANTANA é jornalista, ensaísta e escritor. Redator-chefe da Revista Cenário Goiano, Revisor de textos do jornal Diário da Manhã, Editor-geral do Blog Guardião da Palavra e Superintendente de Imprensa no Rio de Janeiro. Autor de 11 livros publicados. Consultor de mídias sociais em Curitiba, PR. (41) 9.9667-8484 WhatsApp

domingo, 5 de abril de 2020

ESCASSOS ESCRITORES LATINO-AMERICANOS QUE CONQUISTARAM O PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA (*)

Começando a ser entregue em 1901, só em 1945 o Prêmio Nobel de Literatura veio a premiar alguém da América Latina, e foi - curiosamente - uma poetisa: Gabriela Mistral. O fato é curioso, porque comunga três raridades na história do prêmio: mulher (onde os homens são maioria), poesia (onde a prosa é maioria) e América Latina (onde a Europa reina). Gabriela Mistral, pseudônimo de Lucila Maria del Perpetuo Socorro, assim sendo, é alguém a ser lembrada: poetisa chilena de um lirismo surpreendente. Diplomata e feminista, suas obras são carregadas de uma poesia ora forte e violenta, ora leve e romântica. Foi professora do "Liceu de Moças" no Chile e sofreu muito preconceito por ser mulher na sua vida de pedagoga e escritora. São versos dela: "Dá-me a mão e dançaremos,/ dá-me a mão e me amarás./ Como uma só flor seremos, como uma flor, e nada mais...// O mesmo verso cantaremos,/ ao mesmo passo dançarás./ Como uma espiga ondularemos,/ como uma espiga, e nada mais...// Chamas-te Rosa e eu Esperança,/ mas teu nome esquecerás,/porque seremos uma dança/ na colina e nada mais..." "Dame la mano y danzaremos" de Gabriela Mistral "Como sou rainha e fui mendiga, agora/ vivo em puro temor de que me deixes,/ e te pergunto, pálida, a cada hora:/ 'Estás comigo ainda? Ai, não te afastes!'// Quisera eu fazer as marchas sorrindo/ e confiando agora que vieste;/ mas até em dormir estou temendo/ e pergunto entre sonhos: 'não te foste?'" "Desvelada" de Gabriela Mistral Gabriela Mistral é, até hoje, a última mulher latinoamericana a receber o Nobel de Literatura. Em 1967, Miguel Ángel Asturias, poeta e diplomata da Guatemala, recebe o prêmio Nobel por sua literatura enraizada e, em especial, por seu livro Hombres de maíz. Assim começa seu romance mais conhecido: "O Gaspar Ilón deixa que à terra de Ilón lhe roubem os sonhos dos olhos. O Gaspar Ilón deixa que à terra de Ilón lhe joguem as pálpebras com machado... O Gaspar Ilón deixa que à terra de Ilón lhe chamusquem as manchas dos cílios com as chamas que deixam a lua com cor de formigas velhas." Início de Hombres de maíz de Miguel Astúrias. Em 1971, outro poeta fruto de terras chilenas é coroado com as rosas do Nobel: Pablo Neruda (sobre ele já escrevi aqui e aqui) Alguém que acompanhe a coluna há algum tempo já deve ter percebido minha fixação por Neruda, aprendi espanhol por causa dele e sua poesia até hoje é invencível. O autor de Crepusculario, Veinte poemas de amor y una canción desesperada, Residencia en la tierra, Odas elementales y Libro de las preguntas passa impoluto pelos tempos. Neruda, pseudônimo de Ricardo Neftalí Reyes, foi poeta e cônsul. São versos dele: "(Amo o amor dos marinheiros/ que beijam e se vão.// Deixam uma promessa./ Não voltam nunca mais.// Em cada porto uma mulher espera:/ os marinheiros beijam e se vão.// Uma noite se encostam na morte/ no leito do mar.// (4) // Amo o amor que se reparte/ em beijos, leito e pão.// Amor que pode ser eterno/ e pode ser fugaz.// Amor que quer libertar-se / para voltar a amar.// Amor divinizado que se achega./Amor divinizado que se vai.)" "Farewell" de Pablo Neruda "Melisanda: Em teus braços, enredam-se as estrelas mais altas. Tenho medo. Perdoa-me por não ter chegado antes. Pelleas: Um sorriso teu apaga todo um passado: guardem teus lábios doces o que já está distante. Melisanda: Em um beijo, saberás tudo o que calei." "Pelleas y Melisanda" de Pablo Neruda Em 1982, foi a vez do Gabo. O colombiano fantástico Gabriel García Márquez, autor de romances intraspassáveis como El amor en los tiempos del cólera e Cien años de soledad, recebia, então, a honra de figurar no rol de agraciados com o Prêmio Nobel, por "seus romances e contos, em que o fantástico e o real se combinam num mundo densamente composto pela imaginação, refletindo a vida e os conflitos de um continente", como afirmou a Academia Sueca ao anunciá-lo. "Florentino Ariza havia pensado em levar-lhe as setenta folhas que então já poderia declamar de memória de tanto que as lera, mas se decidiu por um meia página sóbria e explícita, em que só prometia o essencial: sua fidelidade a toda prova e seu amor para sempre." Gabriel Garcia Márquez em "O amor nos tempos do cólera" "Havia achado, sempre, que morrer de amor não era outra coisa além de uma licença poética. Naquela tarde, de regresso para casa outra vez, sem o gato e sem ela, comprovei que não apenas era possível, mas que eu mesmo, velho e sem ninguém, estava morrendo de amor. E também percebi que era válida a verdade contrária: não trocaria por nada neste mundo as delícias do meu desassossego. Passei uma semana inteira sem tirar o macacão de mecânico nem de dia nem de noite, sem tomar banho, sem fazer a barba, sem escovar os dentes, porque o amor me mostrou tarde demais que a gente se arruma para alguém, se veste e se perfuma para alguém, e eu nunca tinha tido para quem" Gabriel García Márquez em "Memórias de minhas putas tristes" Octavio Paz, poeta, ensaísta, teórico e diplomata mexicano, recebeu em 1990 a honraria. Autor dos clássicos El arco y la lira e El laberinto de la soledad, o poeta destacou-se no cenário latino-americano de modo surpreendente. São versos do autor: "Minhas mãos,/ abrem as cortinas de teu ser/ te vestem com outra desnudez/ descobrem os corpos de teu corpo/Minhas mãos/ inventam outro corpo ao teu corpo." ** "Entro em ti,/ verdade das trevas./ Quero as evidencias do obscuro,/ beber o vinho negro:/ toma meus olhos e arrebenta-os." Octavio Paz em "Através" "Palavras? Sim, de ar,/ e no ar perdidas./ Deixa que eu me perca entre palavras,/ deixa-me ser o ar em alguns lábios,/ um sopro vagabundo sem contornos/ que o ar desvanece.// Também a luz em si mesma se perde." Octavio Paz em "Destino de poeta" O último nome da América Latina a entrar na lista foi o romancista, dramaturgo, político e ensaísta peruano Mario Vargas Llosa. Sou um fã de Vargas Llosa em muitos aspectos e por muitos motivos, sua literatura e sua postura perante a arte não ícones. Em 2010, a Academia Sueca anunciava a sua premiação por "sua cartografia de estruturas de poder", o que realmente se destaca na obra de Llosa, composta por obras como La ciudad y los perros e La fiesta del Chivo, sempre impregnadas de política. "Agarrei-o pela camisa e disse: ‘Se você chegar perto da Teresa outra vez, a surra vai ser pior.’ [...] Ele me disse: ‘Você está apaixonado até a alma. [...] O amor é a pior coisa que existe. Você anda feito um idiota e deixa de cuidar da vida. As coisas mudam de significado e você é capaz de fazer as maiores loucuras e de se ferrar sempre num segundo.'" Mario Vargas Llosa em "A cidade e os cachorros" "Por volta do meio-dia, muitos andamarquinos já se aventuravam a ir até o centro da praça para manifestar suas queixas, fazer suas recriminações e apontar os maus vizinhos, os maus amigos, os maus parentes. [...] Todos foram condenados por um bosque de mãos. [...] Foram executados de joelhos, apoiando as cabeças num broquel de poço d’água." Mario Vargas Llosa em "Lituma nos Andes" Porque por seis vezes o Nobel de Literatura passou pela América Latina, coroou alguns e a outros esqueceu. A lista de esquecidos é grande: Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Carlos Fuentes, e outros e outros e outros. Porque por seis vezes o Nobel de Literatura passou pela América Latina, coroou alguns e a outros esqueceu. Tomara que ele volte. (*) EUGENIO SANTANA é Escritor, Jornalista, Gestor editorial, Ensaísta, Redator publicitário, Blogueiro, Biógrafo, Ornitólogo. Onze livros publicados. Autor, entre outros, de "Ventos Fortes, Raízes Profundas", autoajuda, Madras editora. (41) 9.9667-8484 WhatsApp