quarta-feira, 3 de março de 2021

QUEM TERIA CORAGEM DE DIZER HOJE: EU SOU FELIZ! (*)

Disse Albert Camus: "A felicidade, é ao final, uma atividade original hoje em dia." O livro "O mito de Sísifo", causou estranhamento com sua última parte. Sísifo feliz, era o escândalo de Camus. Feliz-vivo, feliz-morto, feliz-por-voltar-a-vida, feliz-quando-vê-a-pedra-rolar. Cada livro se presta a mil leituras, no caso de "O mito de Sísifo" essa proposta sofreu uma redução considerável. Na bipolaridade da guerra fria, na frança pós-guerra, ou se estava do lado do capital, ou do lado da revolução. A obra posterior de Camus também sofreu um processo redutivo de análise, sempre lido a luz do capital ou da revolução (veja as críticas dirigidas ao "O homem revoltado"). Quase na mesma época do lançamento de "O mito de Sísifo", Walter Benjamin escrevia nas "teses sobre a história" acerca da revolução que se orienta para a tristeza dos antepassados e que por revolta contra essa tristeza quer se efetivar, e a revolução que se orienta para a felicidade dos descendentes livres. Quase 100 anos antes de Benjamin e de Camus, esta mesma proposta foi feita por o Walt Whitman. Na introdução de "Folhas de Relva" o autor fala que a América recebe uma herança de um descendente robusto que virá. A proposta é então: não se oriente pelo passado de tristeza, mas sim pelo futuro de alegria. Mas em todos estes autores este futuro de alegria já pode ser acessado agora: na "agoridade" do presente. Neste momento cheio e robusto que agora se apresenta a nós. Mas como se é construída a tristeza e a felicidade? Não é um demônio externo a nós que nos faz tristes ou felizes, nem nós mesmos fora do mundo. Pense: acordar-trabalho-almoço-trabalho-casa-dormir-acordar-... Todo dia, todo ano, por uma vida. É esta base material que nos torna tristes. É não tornar-se cheio no agora se orientando para uma felicidade futura, e que se acessa agora. Mas e aquela história? Acordar-trabalho-almoço-trabalho-casa-dormir-acordar-... Sim, é revoltante, sim, deve-se mudar essa rotina que esvazia, mas, sim, há felicidade agora. A revolução é pautada na mudança das bases materiais de exploração e contradição. Mas a própria revolução tem suas próprias bases materiais. Esta base material é toda-a-exploração-do-mundo e a felicidade-potência dos agentes da revolução. Esta revolução não tem nenhuma base metafísica. A dor, a exploração, é sentida no corpo, nas mil sensações diárias do trabalhador. A felicidade também, sentida no corpo, nas mil sensações do trabalhador. Mas o revolucionário, mesmo sentindo toda a infelicidade, é um amante, amante feliz da vida que virá e que ele, agora, experimenta. É claro que esta felicidade é custosa. É preciso muita energia para sustentá-la, porque ninguém diz hoje de forma inocente, sou feliz. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor editorial. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

A EQUIVOCADA APOSTA EM RECEITAS PRONTAS AMOROSAS (*)

Qualquer relação emocional tem seu funcionamento baseado em contratos e acordos, quer sejam eles explícitos ou implícitos. Acontece que a maioria desses acordos e contratos são idealizados apenas dentro da nossa cabeça. Em geral, queremos a companhia, o acolhimento e a devoção do outro e estabelecemos um formato para que a convivência se encaixe perfeitamente em nossas expectativas. Por alguma misteriosa razão, esquecemos de informar ao outro sobre nossas expectativas. Ao contrário, acenamos com promessas de afeto e completude, porque cremos que se o outro acreditar que encontrará em nós seus sonhos de realização emocional, também se disporá a realizar os nossos sonhos. Estabelece-se então, um pacto perfeitamente delineado para aplacar a necessidade que temos de preencher nossos infinitos vazios. Celebramos um pacto unilateral, velado. Mantemos em segredo nossas reais ambições e ficamos torcendo para que o outro as adivinhe. Tratamos nossa vida como se fosse uma mesa de jogo; apostamos em receitas prontas, em saídas milagrosas para nossa solidão. Trocamos nossa individualidade por companhia casual. Investimos em relacionamentos supostamente estáveis, sonhando permanecermos livres. E, assim que percebemos que ninguém é capaz de adivinhar nossos desejos, ficamos magoados, tristes, rancorosos. E, culpamos o outro pela nossa infelicidade. O que queremos afinal? Será que alguns de nós sabe essa resposta? Pra sermos sinceros, poderíamos começar revelando nossas sombras, nossas verdadeiras intenções. Por alguns dias isso bastaria. Bastaria para atrairmos à nossa mesa, jogadores cujas cartas fossem suficientes para aturar nossos blefes. Jogo legalizado, limpo, honesto. Depois de alguns dias, pode ser que resolvêssemos trocar as cartas, mudar o jogo, trocar as regras. Mas, a essa altura, nosso parceiro de mesa já estaria mais familiarizado com a nossa loucura funcional; caberia a ele continuar no jogo ou se levantar e partir para outra. Ahhh, mas a nossa sinceridade não suportaria tanta honestidade. Além disso, nossos objetivos são transitórios, efêmeros, fugazes. Queremos uma viagem libertadora, qual uma expedição à Antártica, mas não abrimos mão de uma equipe de apoio que nos socorra, caso mudemos de ideia e passemos a a ansiar por camas quentes, banhos mornos e segurança. Nossa natureza é narcisista, nossos planos não incluem o sucesso alheio, nossas projeções revelam nosso caráter individualista. Queremos sempre o que ainda não temos. Até pode ser que exista uma esperança para o nosso futuro. Mas, antes de embarcarmos na próxima fantasia, quem sabe não arranjemos coragem para mostrar nossa verdadeira cara. Quem sabe não sejamos capazes de abrir mão do conforto da aceitação e revelemos na íntegra quem somos nas entrelinhas. Se alguém se arriscar a se aventurar conosco, será porque terá visto em nós algo que vale a pena, ainda que não seja perfeito ou ideal. Aquele que olhar para nossa real essência e, ainda assim, for capaz de nos desejar, será digno de nós. Digno de visitar nossa confusão, de ser bem-vindo à nossa solidão, para fazer parte, mergulhar conosco e encontrar a paz onde, no fim das contas mora a nossa verdade. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor editorial. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

MEMÓRIAS DE ADRIANO

Mais uma vez, não é nada disso: Marguerite Yourcenar é capaz de apreender delicada e cuidadosamente a mente daquele que lhe desperta profunda admiração. O uso atento, preciso e fluido das palavras é acompanhado de um forte compromisso com os fatos históricos, que a escritora não desrespeita em momento algum. “Memórias de Adriano” não é uma simulação, como se a escritora se vestisse de imperador romano e o interpretasse como em um teatro. Ela lhe rouba a voz na pré-condição de devolvê-lo à vida novamente. Não por acaso essa foi a mais bem sucedida obra do gênero na história da literatura. (Writer And Journalist Eugenio Santana, FRC)

terça-feira, 2 de março de 2021

SOMOS TODOS TRAIDORES...

Permita-me perguntar: você já foi traído de alguma forma? Não poucos de nós já foram traídos. Só os amigos nos traem; os inimigos nos decepcionam. Só as pessoas a quem nos doamos muito podem nos ferir tanto. E você, já traiu? Talvez fiquemos inibidos em responder. Mas, sinceramente, todos nós já traímos! E, o que é pior, traímos aquilo que é mais relevante para ter uma mente livre e uma emoção saudável. Traímos nosso sono, nossos finais de semana, nossas férias, nosso relaxamento. Traímos o tempo precioso que poderíamos gastar conosco, fazendo uma higiene mental, reciclando nossas falsas verdades, nutrindo-nos com prazer de viver. Somos todos traidores. (Escritor/Jornalista/Ensaísta EUGENIO SANTANA - IMAGEM E PALAVRA )

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

ESCRITOR SEM ROSTO (*)

Nascido em Long Island, o escritor sem rosto estudou engenharia aeronáutica na Universidade de Cornell, deixando o curso ao ser convocado pela Marinha. Nas Forças Armadas tirou as fotos que até hoje são divulgadas como as únicas do autor (a Marinha forneceu outros materiais para seus livros). Quando voltou do serviço militar, trocou seus estudos para inglês em Cornell e teve aulas com o escritor Vladimir Nabokov, autor de Lolita. Após um curto período trabalhando com escrita técnica, entrou para o mundo da ficção e desapareceu por completo. Se por um lado faltam informações a seu respeito, por outro sobram especulações e teorias levemente delirantes sobre Thomas Pynchon. A mais inusitada afirma que o escritor seria o novo nome adotado por Jim Morrison (1943-1971), vocalista da banda californiana The Doors, vivo e oculto sob outra identidade — afinal, ambos parecem ter os mesmos interesses em física, ocultismo, matemática e cultura pop. Outros afirmam ser Bob Dylan ou ainda o terrorista Unabomber o homem por trás da figura misteriosa de Pynchon, e por aí vai. O culto a sua personalidade acaba sendo um magnífico diferencial na literatura contemporânea, mesmo entre notórios reclusos, como J. D. Salinger, de O Apanhador no Campo de Centeio, J. M. Coetzee, prêmio Nobel sul-africano, e os nacionais Dalton Trevisan e Rubem Fonseca. Este último, aliás, é amigo de Pynchon. Para Fonseca, ele escreveu o prefácio da edição americana da coletânea de contos O Cobrador. Não é de todo raro encontrar nos Estados Unidos e em outros países grupos de leitores devotos de Pynchon, reunidos para dissecar cada linha da obra do escritor e verificar seus mecanismos ocultos. O editor e escritor gaúcho Antônio Xerxenesky é um desses leitores aficionados pela obra do escritor, já tendo lido todos os seus livros, incluindo a coletânea de contos Slow Learner, cuja introdução contém as poucas informações oficiais disponíveis sobre sua infância e juventude. Para Xerxenesky, Pynchon ganha pouco se expondo: “A obra dele ganha muito com esse silêncio midiático, com referências obscuras, e perderia a graça se ele precisasse vir a público toda vez se explicar. Certamente, não haveriam leitores reunindo-se ao redor de seus livros se fosse assim”. Embora sua figura anônima seja fascinante, o editor afirma que ela não se sustentaria sem a qualidade excepcional do texto. “A gente fica curioso para descobrir quem é a mente doentia que criou esses universos tão fenomenais, e não podemos, e a graça está nisso.” O editor de Pynchon no Brasil, André Conti, da Companhia das Letras, nunca entrou em contato com o escritor, tratando tudo com seus tradutores (leia mais na matéria ao lado) e agentes. Para ele, a obscuridade da persona do autor de Contra o Dia é condizente com o universo criado por ele. “Se há algo em comum às obras do Pynchon é o fato de tudo ser permeado por um clima de desconfiança, paranoia sobre entidades conspiratórias. E nada melhor para falar sobre isso do que um autor recluso, igualmente desconfiado. É como se ele vivesse dentro daquilo, e os leitores se empolgam em suas vocações detetivescas para tentar descobrir não só significados ocultos em seus livros mas também qualquer informação sobre sua figura”. Sobre sua reclsuão, Conti conclui com um conhecido clichê literário que não poderia ser melhor aplicado a Pynchon: “O livro precisa falar por si só”." (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor editorial. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

NÉVOA DO ESQUECIMENTO...

Com o tempo, as imagens apagam-se como se fossem velhos retratos carcomidos pelo desgaste inevitável. Por trás das pupilas mil sonhos desfeitos, alguns totalmente mortos, cinzas jogadas ao vento. A asa do tempo cobriu meus devaneios perdidos e soterrou nesta vida a esperança de dias melhores e promissores. A vastidão sempre foi minha residência fixa. Tudo desvanece com o retinir dos sinos eternos. A névoa do esquecimento tomou conta de quase todas as minhas lembranças. Tudo regenera em minha memória alada, só os grilhões do eterno voltar nutrem a terra ressequida do meu coração. As asas da dor abriram-se sobre intermináveis dias da minha vida. Só a senhora de cabelos de nuvens de algodão há de me tirar do mundo das sombras. Eternamente voltaremos das cinzas. (Escritor/jornalista/ensaísta Eugenio Santana - Imagem e Palavra)

sábado, 20 de fevereiro de 2021

ANJOS E CÃES NÃO SÃO MUITO DIFERENTES (*)

Charles Bukowski estava mais ou menos com trinta anos quando sofreu uma crise hemorrágica e foi internado praticamente entre a vida e a morte. Até aquele momento, não passava de um contista de poucas publicações em revistas baratas, morava em quartos de hotéis sujos e vivia de pequenos trabalhos manuais. O médico lhe dissera, após a regeneração improvável, que "mais nenhuma gota de álcool, se não você morrerá". A recomendação médica, é claro, foi negligenciada, mas quiseram os deuses lhe dar outra oportunidade de viver pelo menos mais quatro décadas. Ao retornar para casa depois do internamento, Bukowski sentou-se em frente à máquina e recomeçou a escrever como um louco - só que agora, poemas, muitos e muitos poemas. Em suas próprias palavras, depois de ter outra chance de viver, tudo que ele queria era "gritar um pouco", o que classificou como um ato egoísta, mas também como algo inevitável. Desde então, Bukowski começou a tecer a sua reputação como escritor. Nas publicações underground de Los Angeles, seu nome era cultuado. Ele era o rei das "pequenas publicações". Durante a década de setenta e principalmente nos anos oitenta, Bukowski encontrou a fama que sempre almejara. Jean-Paul Sartre lhe chamara de "o maior poeta da América". É certo que Bukowski escrevia poemas desde os 15 anos, e que os seus trabalhos anteriores e posteriores ao internamento não ficaram muito diferentes em relação ao trato com a linguagem ou a algum outro aspecto formal do poema. O que é flagrante e, creio, o que determinou o reconhecimento e a qualidade da poesia de Bukowski após a sua quase morte foi a clareza e a sensibilidade adquiridas e traduzidas por ele diante de um acontecimento dessa natureza. Ao lidar com o seu tema preferido (ele mesmo), soube fazê-lo com a maior honestidade e com maior precisão que antes de ter vivido uma situação limite. Por "ele mesmo" pode-se entender, além da questão biográfica, é claro, um modo de estar no mundo e de vivenciá-lo que, de certa forma, dialogou com muitos e muitos anjos caídos (uma expressão sua) nos Estados Unidos e fora dele. Ao abordar personagens e acontecimentos fora da engrenagem do chamado "sonho americano" (que nada mais é do que a vida comportada da classe média próspera e alienada) a poesia de Bukowski radiografou e apresentou ao mundo o outro lado da vida estadunidense. "Anjos e cães não são / muito diferentes". Este é um verso que abre uma de suas obras-primas, chamada "Uma janela de vidros espelhados". Este é um verso que sintetiza bem a percepção de Bukowski sobre os seres humanos e, no limite, sobre a vida e a poesia. Para Bukowski, o que se considera grande e transcendental pode ser ao mesmo tempo algo corriqueiro, constantemente rechaçado e desprezado pela maioria das pessoas. Fazer um poema sobre os vagabundos que se sentam às duas e meia da tarde numa cafeteria de estimação para ficarem ali tomando café e esperando que o tempo passe, saboreando o escorrer melancólico do dia junto a uma xícara de café, fazer um poema com este tema significa dizer: olha, a vida pode constantemente ser sem graça e desprezível, mas se você tiver um pingo de vontade, um punhado de compaixão pela sua própria existência e a dos outros, você poderá transformar o mais reles acontecimento cotidiano em poesia. Viverá na poesia. Sentirá a poesia enquanto vive, seja em seus melhores momentos, seja em seus piores momentos, mas haverá sempre uma clareza de sentimentos que só a poesia pode proporcionar. Só deste modo conseguirá escrever algo tão simples, honesto e sensível como estes dois versos: you can't beat death but you can beat death in life, sometimes. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor editorial. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

PERDER E GANHAR. CHEGAR E PARTIR. RECOMEÇAR (*)

Chega um instante em que você tem que decidir o seu destino. Permaneço no meu querido sofá rasgado que já tem a forma do meu corpo? Ou pego a mochila, umas mudas de roupa, e saio de fininho antes do amanhecer? Todos passam por momentos de decisão onde um passo pode levar tanto para a glória, quanto para a beira de um abismo. A sensação que tenho é que quanto mais amadurecemos, mais precisamos tomar as rédeas da nossa vida. Quando somos crianças sempre existe alguém que decide por nós; o que vamos comer, aonde ir, o que vestir… Com o passar do tempo o fato de ser pessoa começa a nos cobrar decisões. Vem bem de mansinho e sem que a gente se dê conta passamos a decidir com quem nos relacionar, que profissão escolher, fazer um plano de carreira. Vamos pouco a pouco tomando o controle da nossa existência, conduzindo nossos caminhos, até que, num piscar de olhos, somos pilotos de Fórmula 1 disparados na carreira da vida, entre ultrapassagens e colisões lutando para chegar ao pódio. Você é o piloto, o condutor, quem tem a posse da direção. A vida é representada pelo carro. Os seus adversários e companheiros de equipe são as pessoas que você interage. Todos buscam a vitória. A vitória afetiva, a vitória profissional, o reconhecimento, a recompensa. Mas cuidado, porque o percurso é escorregadio, chuvas torrenciais surgem sem trovoadas. Preste atenção quando houver neblina e tente não se dispersar com a paisagem. Na vida a gente só muda diante do novo. Livros já lidos, músicas que a letra se sabe de cor, receitas que não precisamos mais espiar… Isso faz parte da nossa essência, do que construímos, são parte de nós e da nossa estrutura como indivíduo. No passado nós já arriscamos ao ler aquele livro, escutar aquela canção e preparar aquela receita. Na maioria das vezes o que nos mantém em pé diante das dificuldades não é o que temos, mas sim, o que queremos ter. Temos quem nos ama, temos amigos. Essas pessoas são pivôs na nossa existência, pilastras que nos ancoram e nos escoram. Gratidão a parte, mas para exercer o ofício do novo é fundamental arriscar. O que nos faz sair do lugar é exatamente a busca pelo desconhecido, perseguir a melhoria, vislumbrar a mudança. É sonhar. Como saber que é hora de mudar? Pergunta difícil, cheia de possibilidades. Ir ou ficar? Se ir, para onde? Esquerda, direita, em frente? Ficar é mais fácil porque não exige nada de nós. Entretanto é provável que, mais adiante, você terá que conviver com as dores do reumatismo por ter ficado tanto tempo no sofá da vida. Eu costumo dizer que a hora de soltar as correntes e dar o primeiro passo é justamente quando se sentir incomodado. Atenção à luz amarela do semáforo. Quando ela começar a piscar e você se descobrir enfadado, molestado na situação na qual vive é hora de mudar o trajeto. O incômodo gera infelicidade, frustração, te sucumbe à sensação de incapacidade. Ele é como a febre que denuncia quando algo vai mal no organismo. É o pisca-alerta da vida.Esse peso faz enxergar que aquilo que andava bem e te fazia feliz, já não te completa mais. O que era bom transformou-se em algo penoso, enfadonho, inoportuno. Chegou a hora de botar mais combustível, trocar o óleo, calibrar os pneus, ou talvez só mudar o trajeto para evitar um acidente de percurso lá na frente. Portanto, segure firme o volante. Derrape, mas ultrapasse lá na frente. Esbarre, mas faça a curva com segurança. Tenha precaução em tempos de chuva, mas acelere nas retas quando o sol brilhar! (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor editorial. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

SENTIMENTOS MARÍTIMOS EM CORAÇÕES OCEÂNICOS (*)

Algumas expressões são autoexplicativas: "sentimento oceânico" é uma delas. Descobri-a entre as primeiras páginas de "O Mal-Estar na Civilização", de Sigmund Freud. Freud, ao abordar a religiosidade, que ele próprio considerava uma ilusão, foi confrontado com os argumentos de um amigo não identificado no livro. Este amigo entendia que a fonte da energia religiosa seria não uma ilusão, mas uma real sensação de eternidade, um verdadeiro "sentimento oceânico" a partir do qual alguém poderia considerar-se religioso, ainda que rejeitasse a fé, a crença em um deus onipotente ou na vida após a morte. O "sentimento oceânico" é tomado por Freud como uma impressão de vínculo e comunhão com o mundo. Como psicanalista, Freud rejeita a expressão. Como leigo, eu a achei tão bonita que simplesmente não pude esquecê-la. Se Freud refutou o sentimento oceânico como explicação psicanalítica para a crença religiosa das civilizações, eu o resgato em seu esplendor literário. A literatura não quer ser ciência; por isso, tem essa belíssima licença de revolver o lixo das ideias. Na verdade, desde que li esse livro, guardei a expressão como carimbo para os momentos que vivo. E tenho colecionado meus sentimentos oceânicos. "Sentimento" é uma palavra aberta - nela cabe toda a massa difusa de nossa subjetividade. "Oceânico" é um adjetivo emprestado do substantivo "oceano". O oceano é a imensidão líquida que envolve 71% do nosso planeta. Vasto e grandioso, abriga em seu ventre os segredos de uma biodiversidade escondida de nós, que, enquanto seres terrestres, vivemos à margem do principal componente da superfície da Terra. O oceano é místico e infinitamente belo: desconhecemos todo o esplendor biológico que comporta. Ele sugere eternidade: quando nosso olhar investiga seu fim, encontra a linha do horizonte, que é o limite dos nossos próprios olhos, nunca do oceano; este parece prosseguir de modo a penetrar o imensurável. Oceânico é o sentimento capaz de fazer caber em si a imensidão do mundo. Quanto a nós, às vezes, há sentimento sem oceano. São os dias que parecem transcorrer dentro de quadrados minúsculos, no interior das jaulas feias da rotina e dos deveres. Às cores da vida parece faltar o azul celeste espelhado na vastidão líquida dos mares. São as lágrimas miúdas que vertem dos olhos e secam nas fibras do travesseiro; sem imensidão, sem eternidade. Nossa profundidade e nossa importância não cabem no cotidiano raso e suas ocorrências superficiais. Mas há, também, oceano sem sentimento. Quantas vezes testemunhamos a beleza infinita e única de um acontecimento, mas nos falta a disponibilidade do coração? Quantas vezes deixamos que o cansaço, o costume e a lembrança nauseante dos fracassos nos congelem diante de uma situação na qual deveríamos nos lançar com ardor? A magia só ocorre quando sentimento e oceano se fundem em um torpor muito difícil de ser descrito: é o sentimento oceânico. Não existe uma fórmula para ele; cada um de nós o experimenta a seu modo. Viajar me desperta o sentimento oceânico. Experimentar o inédito das culturas, dialogar com pessoas diferentes e visitar a beleza do que se construiu tão alheio a mim me faz mergulhar em uma profundeza de sensações. O prazer de viajar é tão intenso que esqueço o conforto, a pressa, o medo de altura, a inibição: o desconhecido é um mar aberto onde posso inventar de reinventar-me e fingir ser quem eu seria em um lugar distante, distinto. Encontro em algumas pessoas o sentimento oceânico. Diálogos que se interpenetram, ideias que se conectam sem a necessidade de palavras explícitas. Com algumas pessoas, construí arduamente esse tipo de relação. Com outras, não precisei me esforçar: soube desde o primeiro instante que eram oceanos seguramente navegáveis sem mapas ou recursos cartográficos. Um vinho tinto seco com sabor musical de Debussy faz da noite de luar um oceano negro no qual posso me emaranhar eternamente, perdido no encantamento com a vida. Uma paisagem inesperada descoberta no vértice de um morro. Uma cena singular flagrada no miolo da cidade. A conexão com a natureza, com os outros animais. O perfume da grama cortada, do bolo de cenoura da mãe, o abraço de uma pessoa distante; uma música, um poema, algo que nos faça reviver pedacinhos de passado. Um livro que nos conduza como se a realidade morasse ali, na sucessão das páginas. O sentimento oceânico tem um forte elemento onírico - mistura à realidade ingredientes de sonho, memória e imaginação. Quando encontramos alguém capaz de nos causar sentimento oceânico mesmo nos dias de rotina, é preciso impedir que passe junto às ocorrências ordinárias da vida. O amor, aliás, deve ser como a perfeita expressão do sentimento oceânico. Não há um amor que vislumbre seu fim ou que reconheça ilusória sua impressão de eternidade e imensidão. O sentimento oceânico transcorre no interior de um momento, e momentos são finitos; mas o sentimento oceânico, tomado em si, não conhece tempo e espaço. O amor, em seu deslumbramento, só sabe se manifestar com eternidade e imensidão. Se um dia deixar de ser eterno e imenso, é porque se extraviou; oceano e sentimento perderam seu liame, sua conexão. Todo amor, mesmo que se diga terminado ou reduzido a escombros, foi eterno e imenso enquanto aconteceu. É o que diz Vinicius de Moraes no célebre verso dedicado ao mais perfeito sentimento oceânico: "que seja infinito enquanto dure”. Sentimento oceânico é aquilo que justifica o todo, que nos enche de boas razões para existir. É verdade que ele se torna difícil para nós, que nascemos com mapas prontos para o sucesso e somos constrangidos a segui-los sempre, sob ameaça de sermos considerados pessoas menores e desprezíveis. Assim, natural que nos deixemos conduzir por caminhos terrestres, duros e secos. Ainda podemos nos libertar dos escafandros da rotina, que nos tornam tão insensíveis à vida. Ainda podemos colocar nossos corações em sintonia com a beleza oceânica de existir. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque e revisor de texto. Autor de 14 livros publicados, entre os quais, "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo" e "Ventos fortes, raízes profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

QUANDO TE VI, AMEI-TE JÁ MUITO ANTES...

Tornei a achar-te quando te encontrei. Quando te vi: a tua imagem levou-me a um tempo muito antigo, já muito antes – que eu nem sabia que existisse. Vi-te numa eternidade que morava em mim. Tua aparição – o momento em que te vi – aconteceu no tempo: era um entardecer. Mas senti que já moravas em mim desde sempre, fora do tempo. Ao te ver fui tocado pela eternidade. Foi belo... Mas por que te amei? Por que não uma outra? O que é que havia em ti que te fizesse única? O que é que eu tinha perdido e reencontrei em ti? Também os homens maduros querem amar e ser amados. Mas quem nos amará? Quero ser amado como escritor – mas não só. O menino também quer ser amado. Para onde é que vai a beleza dos homens na idade do lobo? Quem, sem consolo ou mentira, lhes dirá que eles são belos? Somos amados pelo brilho de eternidade em nosso olhar. (by Eugenio Santana, escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, gestor editorial, biógrafo; autor de 14 livros publicados - (41) 9.9909-8795 WhatsApp)

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

O MEU 14º "FILHO" PUBLICADO EM 2021

"Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo" é o meu 14º "filho" publicado, neste 2021 cheio de incertezas; caos social e econômico e total falta de planejamento para a vacinação massiva contra a pandemia oriunda de um vírus letal. Está escrito em algum lugar: em páginas do planeta-escola a morte do homem é oráculo hermético. Hóspede da Terra, passageiro do mundo. Aqui tudo acaba, aqui tudo acaba quando desponta a estrela vésper. Está escrito na Asa do tempo: escrever ao acaso é chegar é chegar sem prazo, sem data de validade. Alguma alga inventa a vida. Ali onde luas, estrelas, estalos, gargalos. Ali onde áspera é a beleza, suave em excesso. Ali fibra. Ali febre. A amada na distância, nas cartas raras. Onde amarras se rompem, e onde destinos se entrelaçam em elos que não se partem. (Escritor/jornalista/ensaísta Eugenio Santana - IMAGEM E PALAVRA
)

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

EXISTE FÓRMULA MÁGICA PARA SER FELIZ?

Existem pessoas que me julgam dotado de respostas para os impasses da vida. Mal sabem quantos acúmulos em minha trajetória. Contudo, sei o que é felicidade. Difere da alegria. Felicidade é um estado de espírito, é estar bem consigo, com a natureza, com Deus. Com os outros, nem sempre. As relações humanas são amorosamente conflitivas. Invejas, mágoas, disputas, mal-entendidos, são pedras no sapato. Ou no meio do caminho, como diria Drummond. Alegria é algo que se experimenta eventualmente. Uma pessoa pode ser feliz sem parecer alegre. E conheço muitos que esbanjam alegria sem me convencerem de que são felizes. O sábio professor Milton Santos, que não tinha crença religiosa, enfatizava que a felicidade se encontra nos bens infinitos. No entanto, a cultura capitalista que respiramos centra a felicidade na posse de bens finitos. A psicanálise sabe que o nosso desejo é infinito, insaciável. E a teologia identifica Deus como o seu alvo. Ninguém mais feliz, em minha opinião, do que os místicos. São pessoas que conseguem direcionar o desejo para dentro de si, ao contrário da pulsão consumista que faz buscar a satisfação do desejo naquilo que está fora de nós. O risco, ao não abraçar a via do Absoluto, é enveredar-se pela do absurdo. O Mercado, que tudo oferece em sedutoras embalagens, não é capaz de ofertar o que todos nós mais buscamos – a felicidade. Então, tenta nos incutir a idéia de que a felicidade resulta da soma dos prazeres. Possuir aquele carro, aquela casa, fazer aquela viagem, vestir aquela roupa... nos tornará tão felizes quanto o visual dos atores e atrizes que aparecem em peças publicitárias. Tenho certeza de que nada torna uma pessoa mais feliz do que empenhar-se em prol da felicidade alheia: isto vale tanto na relação íntima quanto no compromisso social de lutar pelo “outro mundo possível”, sem desigualdades gritantes e onde todos possam viver com dignidade e paz. Jornalista/Escritor/ensaísta EUGENIO SANTANA, FRC – IMAGEM E PALAVRA

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

EXPLORADO OS CHEIROS, A MULHER PASSA AOS SABORES (*)

O primeiro aspecto explorado pela mulher no corpo do homem, o primeiro que ela percebe é o cheiro. O cheiro é determinante. Quase sempre baseada no cheiro ela decide se continua a ver aquele homem ou se o evita. Evita-o porque ele é desagradável, porque lhe dá náuseas. Sente-lhe o cheiro à distância, basta ele estar sentado dá náuseas. Sente-lhe o cheiro à distância, basta ele estar sentado ao lado, no trem, no metrô, no avião, no carro, no restaurante, numa sala ou no elevador. Mais determinante ainda é o hálito do homem, porque se o cheiro pode ser modificado por meio de desodorantes e perfumes, o hálito, não. A mulher, quase institivamente, faz de tudo para senti-lo. Para descobrir, basta aproximar-se. Às vezes, ela o faz de propósito, aproxima-se o mais possível como quando, por exemplo, tenta ajustar-lhe a gravata. Os homens apreciam esse gesto, esse tipo de atenção. O cheiro do corpo e do hálito são uma condição "sine qua non" para o prosseguimento da relação. Se o cheiro é bom, ela pode continuar. A mulher experiente sabe também intuir, pelo cheiro do corpo e do hálito, o cheiro do sexo. A relação entre corpos e odores é uma ciência cultivada pelos criadores de perfume. A arte de criar perfumes é uma arte erótica. Nasce da profunda consciência da psique feminina e das metamorfoses do odor natural do corpo da mulher misturado ao perfume. O mesmo perfume assume fragrâncias diversas em mulheres diferentes. Os perfumistas são grandes cultores do corpo feminino. Explorado o cheiro, a mulher passa aos sabores. Esse ato cognitivo necessita de um início erótico, o beijo. No homem, ao contrário, é com o beijo que começa a exploração, porque antes não conseguia perceber o cheiro da mulher, mas apenas seu perfume artificial. Com o beijo, sente seu hálito e, às vezes, uma reação de desagrado. O homem, porém, não dá a essa sensação a mesma importância que a mulher. Se está excitado eroticamente, deixa de sentir o cheiro desagradável. No homem o hálito é apenas um obstáculo, jamais uma barreira. Para a mulher o sabor da boca é tão determinante quanto o cheiro, ou mais ainda. O beijo é uma maneira de começar a oferecer algo do próprio corpo e de tomar alguma coisa. É um iniciar a beber o corpo do homem. Pelo modo de beijar, a mulher experiente deduz o caráter do homem. Por particularidades insignificantes. Percebe, por exemplo, se no ato sexual é capaz de esperar longamente, de adiar o próprio orgasmo, ou então se tem ejaculação precoce. Se é generoso e capaz de dar-se ou se, ao contrário, é um ladrão de prazer. Num beijo a mulher descobre muitas outras características do homem, como por exemplo se é inteligente e sensível. A maneira como o faz, porém, guarda-a para si, não o diz. Não o dirá jamais, principalmente a quem não compreenderia. É um saber antigo, iniciático, que poderia ser julgado obsceno, que requer cumplicidade, reserva. Uma mulher não falará dessas coisas a uma jovem que jamais tenha estado profundamente apaixonada. Assim como jamais falaria de erotismo com um rapaz. Se quiser transmitir-lhe algum saber, fará amor com ele. Pelo conhecimento do corpo do homem, uma mulher sabe também avaliar as outras mulheres. Ouvindo uma mulher falar, observando-lhe as mínimas atitudes, sabe se está apaixonada ou não, sabe se aceitou o corpo do seu homem ou não. Sabe se o seu é um verdadeiro e grande amor ou apenas um sentimento de posse, de proteção ou de prevaricação. A mulher conserva, em todos os instantes de sua relação amorosa, a capacidade de percepção e avaliação. O homem, não; quando está excitado eroticamente, perde ainda o pouco de perspicácia que possui. Fica dominado por uma única emoção e não está mais em condições de dizer se aquela mulher é feia ou bonita, gorda ou magra, se tem seios fartos ou apenas esboçados. As mulheres ficam espantadas e perturbadas quando ouvem dizer que seu homem teve relações com uma mulher que, a seus olhos, é muito feia, até mesmo repulsiva. É que na excitação erótica o homem gosta de tudo, assim como se lhe apresenta. Porém, quando a excitação desaparece, desaparece também a impressão de beleza. Para alguns homens, é exatamente como o despertar de um sonho. Encontram-se ao lado de um corpo estranho, tão diferente do seu, incrivelmente pequeno, ou incrivelmente gordo, e ficam espantados. A admiração do homem pela mulher bonita vista ocasionalmente é, em geral, efêmera. O olhar erótico é facilmente excitável, mas é também volúvel. Na maioria das vezes os homens não são profundamente atingidos pela particular beleza de uma mulher, não se deixam perturbar por ela. Claro que não poupam elogios, mas porque gosta daquele vestido, o penteado é original, porque a mulher é agradável. É no desenvolvimento da relação erótica que o homem descobre em sua mulher a perturbação provocada pela beleza. De repente vê, quando não havia visto antes. É uma comoção poética que lhe provoca um grito maravilhado e de reconhecimento. No amor o milagre se repete uma segunda vez, depois uma terceira, depois a cada encontro. Cada vez um detalhe, cada vez a desconcertante experiência da perfeição. Também a mulher sente essa emoção olhando seu homem, mas a experiência do homem é mais violenta. Assemelha-se à maravilha do reconhecimento de uma mãe, que, encantada, olha o filho de dois anos. E, de fato, a beleza da mulher amada sempre se assemelhou, aos olhos do homem, às das crianças, suscita a mesma ternura, até um sentimento de fusão. O grande erotismo é possível somente entre um único homem e uma única mulher que levam ao extremo o que é específico do próprio sexo e do sexo do outro. Tem-se então a interminável aparição do novo. Aquilo que num capítulo precedente chamamos de "algo mais". A mulher jamais encontraria o algo mais sozinha, mas apenas um êxtase contínuo, cíclico, recorrente. O homem não encontraria nunca o algo mais sozinho, mas apenas o diverso. O algo mais é a revelação do novo no contínuo, no que já é. O novo torna-se então um acréscimo, um enriquecimento. Só o que existe, o que tem duração e continuidade pode aumentar, tornar-se maior. Mas somente o que é descontínuo pode ser confrontado, comparado, recordado. É a união do contínuo com o descontínuo que cria a identidade e, assim, a possibilidade de crescimento, a tensão para o alto, em direção à perfeição. (*) EUGENIO SANTANA é Escritor, Jornalista, Gestor editorial, Ensaísta, Redator publicitário, Poeta, Blogueiro, Biógrafo, Romancista, Agente literário. 11 livros publicados e 3 no prelo. Autor, entre outros, de "Ventos Fortes, Raízes Profundas", autoajuda, Madras editora. Contato: (62) 9.8154-9077 WhatsApp

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

PARA O HOMEM A SEDUÇÃO NUNCA É MOTIVO DE TRIUNFO, MAS DE ENCANTAMENTO (*)

O homem loucamente apaixonado é como o convertido que deixa casa, filhos, tudo pela fé. Ou como o terrorista que mata, mas por razões idealistas. O prazer não possui essa dignidade ética. O erotismo masculino, assim como se apresenta nas fantasias que examinamos, é absolutamente o inverso da ética. Esta impõe que se considere o outro ser humano como fim e jamais como meio. O objeto do desejo erótico masculino, ao contrário, é meio, como o alimento, como a água, como a cama para quem tem sono. Tudo o que serve para satisfazer uma necessidade é meio. Até mesmo a reciprocidade, no erotismo masculino, é egoísta. O prazer da mulher é desejado em vista do próprio prazer. O homem erótico é possuído por desejos, corre atrás de todas as coisas, como para atingir esse fim. Em linguagem chula, diz-se que cedeu às "fraquezas da carne", que "se deixou levar". É como a vertigem do jogo. De fato, esse erotismo é perigoso como o jogo de azar, como a corrida automobilística, tanto é verdade que mais cedo ou mais tarde, mas inevitavelmente, acontece a catástrofe. O jogador só pára de jogar quando perdeu tudo, quando está arruinado. A inconsistência moral do erotismo emerge violentamente das páginas de Henry Miller. Há algo nas fantasias eróticas masculinas, que é antagônico ao compromisso, à responsabilidade. As mulheres que representaram o ideal erótico masculino possuíam, como característica comum, o fato de não criar laços e responsabilidades. Marilyn Monroe não é uma heroína romântica. Parece dizer: "Eis-me aqui, simples, ingênua, frágil, excitável. Faça o que quiser. Não lhe peço nada, nem casamento, nem continuidade, nem compromisso, nem dinheiro. Nem percebo suas intenções, sdeu significado sexual". No filme "O pecado mora ao lado", Marilyn oferece-se continuamente, mas não se dá conta disso. A mulher que encarna a fantasia erótica desresponsabiliza o homem de seu desejo. Não pede ao prazer compensações éticas. "Se lhe agrado", esta é a mensagem, "aqui estou, tome-me. Se quiser ir embora, de mim não terá nem aborrecimentos, nem queixas, nem súplicas, nem chantagens, nem lamentações. Não o terei preso a mim por causa de filhos, mãe, parentes, irmãos. Não preciso do seu dinheiro. Não sou ciumenta, não guardo rancor. E, finalmente, se quiser voltar, aqui estou às suas ordens." Uma mulher pode resolver jantar com um homem porque ele é importante, pode também casar-se por dinheiro. Nesse caso, coloca entre parêntesis as qualidades negativas em troca de uma vantagem social. Mas quase nunca por uma vantagem erótica. É raro que procure num homem o desempenho sexual e deseje apenas isso. Erica Jong, no livro "Pára-quedas e beijos", tenta comportar-se assim com seus amantes ocasionais, mas não consegue, e o que sente é raiva, ódio. Em geral, a mulher apenas fica excitada eroticamente se a pessoa lhe agrada de modo global. Mas, claro, às vezes pode sentir-se atraída por qualquer qualidade erótica extraordinária. Um célebre estadista francês tinha grande sucesso entre as senhoras de Paris por possui um pênis superdotado. Mas o que atraía aquelas senhoras era muito mais a curiosidade, a competição com as outras mulheres, o fato de ele ser o presidente. Era, assim, uma apreciação ditada pelo social, não algo que a mulher escolhesse por conta própria. Por mais belo, musculoso ou viril que seja o corpo do homem, para a mulher são igualmente eróticos os gritos do público, o delírio do teatro e até mesmo um belíssimo iate. O erotismo feminino tende a abrir-se para o mundo, a caminhar sob o sol, entre as pessoas. A mulher sonha fazer amor sob o céu estrelado, à beira do mar, na floresta, onde a natureza é mais bela. Fica eroticamente excitada quando caminha de mãos dadas com o seu homem por uma praça, um shopping, ou quando entra numa festa de casamento de braços dados com ele. Também o homem fica excitado se a mulher é bonita, ou quando está apaixonado. Há no homem um componente erótico muito forte que desdenha o externo e valoriza o interno. Nesse erotismo não se espera reconhecimento, triunfo social mas, ao contrário, autonomia. A finalidade última da conquista masculina, a fantasia que se esconde atrás do jogo, é fazer amor. E quando a corte produz um encontro erótico, essa fantasia torna-se desejo. Conseguir fazer amor é para o homem o ponto de chegada, a conclusão. Se uma mulher aceita a relação erótica, mas lhe recusa a sexualidade, recusa-lhe o essencial. O afeto, a intimidade, as carícias não lhe bastam, não podem bastar-lhe, principalmente se for portador do signo de Áries. No mais profundo da alma masculina, em sua mentalidade está radicada a idéia de que se uma mulher lhe concede a sua sexualidade está lhe concedendo ela própria, inteiramente. Por isso o homem que fez amor com uma mulher diz que a conquistou. No íntimo, o homem não acredita em sua capacidade de seduzir. A sedução, para ele, é sempre um milagre. Quando acontece, quando a mulher vestida se despe, é porque ela assim o decidiu e ele só pode sentir-se perplexo e feliz. Mesmo o dom-juan mais cínico fica emocionado quando uma mulher desconhecida entrega-se a uma intimidade inimaginável poucos minutos antes. Para o homem, a sedução nunca é motivo de triunfo, mas de encantamento. Jamais causa uma sensação de superioridade, mas de reconhecimento. A experiência de transformações inesperadas e maravilhosas deixa no homem uma impressão intensa, uma lembrança indelével. Afinal, o dom-juan procura mesmo é essa emoção. Quer renová-la indefinidamente, sentir a cada vez o êxtase do inacreditável. Mas também o homem deseja, no íntimo, suscitar uma emoção irresistível, ser amado, ser desejado totalmente. Também ele busca na mulher uma paixão erótica sem freios. Outro fato paradoxal é que o homem, quando uma mulher se entrega a ele com muita facilidade e de modo volúvel, tem a impressão de que ela o faz por cálculo, ou por um motivo, isto é, que age como uma prostituta. A expressão pejorativa "é uma puta" quer dizer, afinal, que ela finge, que engana, que usa sua sexualidade com objetivos eróticos. Não nos esqueçamos de que, para o macho, o prazer sexual é um fim por si mesmo. A idéia de que é usado com outra finalidade o perturba. A idéia de que a excitação erótica possa ser simulada o inquieta. Porque ele não pode fazer isso, porque nele a ereção é uma prova que não se pode falsificar. Essa dificuldade que o homem tem de compreender se a mulher age por amor ou por interesse suscita nele uma sensação de desconforto. Para o homem o relacionamento sexual é uma coisa importante, ele tem necessidade absoluta dele. Nenhuma forma de erotismo cutâneo, muscular, cinestésico, nenhum tipo de intimidade amorosa, nenhum carinho tipo maternal é capaz de substituí-lo e diminuir-lhe a urgência. Para o homem, renunciar ao sexo é tão difícil quanto renunciar a comer ou a beber. As dificuldades encontradas pelos ascetas e anacoretas cristãos não provinham da fome ou da sede, mas das fantasias eróticas contínuas, obsessivas. A castidade, mesmo temporária, é muito difícil para o homem, e por esse motivo foi imposta pelo bárbaro meio de castração. A mulher não tem esse tipo de necessidade. Se não encontra o homem que lhe agrada, prefere não ter relações sexuais, até mesmo por meses e anos. As mulheres se casam porque desejam uma relação afetiva duradoura e estável com uma única pessoa, porque querem uma casa, filhos, bens materiais e segurança. Também aos homens essas coisas interessam, mas poucos estariam dispostos a casar-se se não estivessem certos de poder fazer amor. Para o homem, o relacionamento sexual é uma necessidade cotidiana no casamento, na convivência, na vida. (*) EUGENIO SANTANA é escritor. Ensaísta, Jornalista, Poeta, Biógrafo, Romancista, Redator publicitário, Consultor afetivo; Gestor editorial. 14 Livros publicados, "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (62) 9.8154-9077 WhatsApp

sábado, 24 de outubro de 2020

A MULHER DESEJA CAUSAR UMA EMOÇÃO ERÓTICA INDELÉVEL EM CADA HOMEM (*)

Nos homens, após o ato sexual, há em geral um decréscimo de interesse pela mulher. É um fenômeno que tem muitas gradações, muitas nuances. Está apenas esboçado no homem apaixonado que abraça com força a amada, como se não quisesse mais separar-se dela. Atinge seu ponto máximo no relacionamento com a prostituta porque, neste caso, o desejo desaparece imediatamente, e o homem gostaria de já se ver vestido, fora do quarto, fora do hotel, fora do motel, bem longe. A mulher interpreta esse comportamento como rejeição, desinteresse. Sente-se tratada como um alimento delicioso que provoca grande desejo antes de ser saboreado, mas que depois, quando já se está saciado, torna-se enjoativo. Só que ela não é um alimento, é uma pessoa. O homem, antes, a cortejava, mimava, desejava. Não queria sentir seu desejo, admirava sua inteligência. Queria conversar com ela, conhecer sua história, participar de sua vida, fazer projetos. Depois do orgasmo - ou de um certo número de orgasmos -, é como se ela desaparecesse como pessoa, restando apenas um corpo rejeitado. O desejo da mulher de permanecer ao lado do homem depois do orgasmo (ou orgasmos) é muito mais forte quando ela está apaixonada. Contudo, existe sempre, desde que aquele homem lhe agrade. Isso porque o orgasmo da mulher é mais prolongado, mas, acima de tudo, porque ela sente a necessidade de ser desejada, de agradar de modo contínuo, duradouro. Simone de Beauvoir escreveu páginas cáusticas sobre a necessidade da mulher de ter a seu lado, fisicamente, o homem amado. "A essência", escreve ela, "é sempre uma tortura... mesmo sentado a seu lado, enquanto lê ou escreve, ele a abandona, a trai. Ela odeia seu sono". Simone de Beauvoir e as feministas explicam esse comportamento com o fato de que a mulher é obrigada, pela sua condição social, à passividade. Somente o homem é ativo. Ela procura, então, através do amor, englobar a atividade do homem para poder estar em seu mundo. Procura a fusão com ele para sair de sua maneira de ser incompleta. Quando ele parte, quando a deixa, sente-se perdida, porque sem ele não é nada. Mas esse estado de coisas - seundo Beauvoir - está destinado a desaparecer, quando também a mulher tiver conquistado sua autonomia e sua atividade. Então, mesmo que o homem esteja longe, não se sentirá mais vazia. A mulher quer sentir a presença física de seu homem, sentir as mãos dele sobre sua pele, a força doce e acolhedora de seu abraço, seu cheiro, a mistura dos cheiros que se torna perfume. Quer ouvir sua voz profunda a chamá-la. Quer sentir a aspereza de seus pêlos, o peso de seu corpo, a força delicada de sua mão, o leve contato de entendimento entre seus dedos, o furtivo tocar-se que renova a declaração de amor de maneira, infinitamente melhor que quaisquer palavras. Tudo isso acontece sob o registro da continuidade. Continuidade de ternura, carícias, palavras, penetração, sussurro. Imenso mar em que as sensações se sucedem como ondas, transformando-se umas nas outras. Continuidade nas metamorfoses. Continuidade dos corpos, das peles, dos músculos, dos odores, olores, dos passos, das sombras ao crepúsculo, dos rostos. Continuidade do desejo, da atenção, da excitação, da ternura, da paixão, do cuidado. E, a seguir, desejo de estar junto, de conviver, de participar das mesmas experiências, de ver as mesmas coisas, a mesma lua, as mesmas nuvens, o mesmo mar, de respirar o mesmo ar, de ter a mesma vida. Nas publicações lidas principalmente pelas mulheres, ao lado dos romances cor-de-rosa e das seções de moda e beleza, estão as histórias dos artistas. Os homens não se interessam pela vida privada dos astros, não participam de seus casos de amor. A eles interessa o ator, o cantor, o seu desempenho como tal, mas não o que ele é na vida particular, terminado o espetáculo, em casa com a mulher ou com suas amantes. À mulher, ao contrário, é exatamente isso o que interessa. O fanatismo ou o culto pelos artistas é, portanto, um fenômeno feminino. Ele é o produto, por um lado, do espetáculo, por outro, dos jornais e TVs que falam da vida pessoal do ator ou do cantor. O astro é o objeto escolhido da fofoca, da intriga coletiva. Não há nada semelhante no mundo masculino. O rapaz pode adorar uma cantora, pode até se sentir excitado eroticamente por ela, desejá-la. Mas dificilmente perde a cabeça a ponto de desvalorizar todas as outras mulheres. A mulher fanatizada pelo artista, ao contrário, vê na sua frente apenas ele, e os homens comuns parecem-lhe totalmente sem qualidades, insignificantes. O mesmo acontece com relação a personagens dotadas de poder, particularmente os líderes carismáticos. O homem adora o líder, mas seu amor é totalmente deserotizado. Na mulher, ao contrário, o relacionamento com o líder torna-se facilmente erótico. Em todos os movimentos coletivos, antigos e modernos, ao redor do líder existiu uma corte de mulheres sexualmente disponíveis. A mulher é atraída pelo homem capaz de proporcionar emoções violentas, amor apaixonado. É atraída pelo homem capaz de sentir e de querer, pelo homem que se atira numa aventura amorosa com decisão, com coragem. Esse desejo é o corrrespondente exato da fantasia de sedução. A mulher deseja causar uma emoção erótica indelével em cada homem. A mulher, portanto, aceita o corpo do homem pouco a pouco, gradualmente, através do amor. O homem amado, então, não é mais o animal predador que penetrou em seu corpo, que se satisfez, que dorme saciado. É como um menino que se entregou ao sono como se entregou ao amor, por efeito do seu amor. Não é mais a vítima, mas a caçadora. Sente o orgulho de Diana que lançou sua flecha e agora olha sua vítima inerte, e sente-se recompensada. Então adormece ao lado daquele corpo relaxado, inocente, que deve proteger. O corpo do homem amado não está mais separado. Ela está deitada, reclinada em seus braços e aspira seu hálito. Seu hálito é como o ar, indispensável. Seus odores se fundem, constituem um único olor, um único perfume. Sente o perfume penetrar pelas narinas certa de estar em paz com a vida. Tocá-lo é, então, o mesmo que tocar uma zona maravilhosa, quieta. É a certeza do contínuo, do permanente. Da eternidade. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, gestor editorial, biógrafo, redator publicitário, ensaísta, poeta e romancista. Autor de 14 livros publicados e 18 prêmios literários de projeção nacional. (62) 9.8154-9077 WhatsApp

sábado, 10 de outubro de 2020

VI TODAS AS ENERGIAS TELÚRICAS E INSONDÁVEIS DA NATUREZA (*)

O INTENSO SENTIMENTO DO MEU CORAÇÃO PELA NATUREZA, sentimento que tanto me deliciava, transformando em paraíso o mundo à minha volta, tornou-se para mim um tormento intolerável, um espírito que me tortura e persegue por toda parte. Outrora, do alto de um rochedo, contemplando os vales férteis, desde o riacho até as colinas ao longe, eu via em torno de mim tudo germinado e brotando: quando eu olhava essas montanhas cobertas, da base ao cume, de árvores altas e frondosas, e os vales sinuosos sombreados de bosques deliciosos, o riacho que desliza suavemente entre os canaviais murmurantes, refletindo as nuvens que a suave brisa da tarde faz flutuar no céu; depois, quando eu ouvia os pássaros animar com os seus cantos a floresta inteira, e a infinidade de enxame de mosquitos dançando alegremente no último raio do sol, cujo olhar de adeus, rápido como um relâmpago, libertava da prisão, entre as ervas, um escaravelho que zumbia; quando os ruídos e o movimento confuso em torno despertavam a minha atenção para o musgo que extrai o seu alimento da pedra dura, para a giesta que cresce na encosta arenosa da colina, e tudo isso me revelava a vida interior ardente e sagrada da natureza - e como tudo isso invadia o meu coração ardente! Era como se eu, de algum modo, me tornasse um Deus pela plenitude de emoção que transbordava de mim, e as magníficas imagens do mundo infinito, agitando-se em minha alma, enchendo-na de uma vida nova. Via-me cercado de montanhas gigantescas; abismos surgiam diante de mim, de onde despencavam as torrentes formadas pelas chuvas das tempestades. Embaixo, os rios rolavam suas ondas impetuosas, as florestas e as montanhas estremeciam. Eu via todas as energias telúricas e insondáveis agirem umas sobre as outras, e juntas se fecundarem nas profundezas da terra; e então espécies de seres eu via pulular entre o céu e a terra. Tudo se povoava de milhares de formas diferentes, e os homens se reuniam nas cabanas; depois, construíam suas casas definitivas, passando a reinar sobre o mundo inteiro. Pobres infelizes! Pensam que todas as coisas são pequenas porque eles próprios são assim? Desde as montanhas inacessíveis, para além do deserto em que nenhum ser humano pisou, até a extremidade do oceano desconhecido, sopra o espírito daquele que cria, incessantemente, e rejubila-se a cada átomo de pó vivificado graças à sua palavra! Ah! Quantas vezes, então, ardentemente desejei deixar-me arrebatar, nas asas do grou que passava por mim, rumo às margens desse mar que homem nenhum conseguiu medir, para beber, na taça espumante do infinito, a vida embriagadora que enche o coração, para sentir, um só momento, fraco e limitado como sou, correr em mim uma gota da glória do Ser que produz todas as coisas em si e por si! Irmão, só a lembrança daquele momento basta para me fazer feliz! O próprio esforço feito para exprimir e reviver em mim essas sensações inenarráveis faz com que minha alma a si mesma se supere, mas a seguir obriga-me a sentir duplamente o horror da minha situação atual. É como se um véu que se tivesse rasgado diante de minha alma e o espetáculo da vida infinita se transformasse em um túmulo eternamente escancarado diante de mim. Você pode afirmar "é isso!", quando tudo passa, rola e desaparece como um clarão; quando a energia de um ser dura tão pouco; quando, ai de mim, absorvido pela corrente, esse mesmo que não devore a você e aos seus; não há um só instante em que você não seja, não tenha de ser um destruidor. Seu passeio mais inocente custa a vida a centenas de pobres vermezinhos. Com uma passada, arruína os edifícios penosamente erigidos pelas formigas, e empurra um pequeno mundo, as inundações que arrasam as nossas aldeias, os tremores da terra que engolem as nossas cidades, nada disso me comove; o que me dilacera o coração é esta força destruidora oculta em toda a natureza, esta força que nada cria senão para destruir-se e, ao mesmo tempo, destruir o que a cerca. E é assim que caminho, vacilante e o coração oprimido, entre o céu e a terra com as suas forças sempre ativas, e nada mais vejo senão um monstro sempre esfomeado e devorador. (*) EUGENIO SANTANA é escritor. Jornalista, Gestor editorial, Agente literário, Redator publicitário, Copidesque, Biógrafo. Autor de 14 livros publicados. Mora há 3 anos em Curitiba, PR. Email: es.escritor1199@gmail.com / (62) 9.8154-9077 e fixo do Coworking (41) 3606-6057

segunda-feira, 20 de julho de 2020

MOTIVADOS PELA FÉ OS CÁTAROS SE RENDERAM E MORRERAM CANTANDO... (*)

Muito dos fatores que contribuíram para o apelo do hermeticismo e da cabala cristã foram também responsáveis pela ascensão do catarismo, uma doutrina cristã herética que desafiava diretamente a autoridade da Igreja Católica medieval. Os cátaros floresceram no século XII, período em que aumentaram os contatos entre o Ocidente e o Oriente. As Cruzadas – esforço cristão por reconquistar Jerusalém e outras partes da Terra Santa das mãos dos muçulmanos – estavam no auge e os soldados cristãos, com os mercadores que os seguiam, estavam voltando com ideias desconhecidas na Europa desde a queda do Império Romano. Entre elas estava a heresia do maniqueísmo. Embora liquidado pela Igreja séculos antes no Ocidente, o maniqueísmo sobreviveu nas áreas orientais remotas da cristandade, pelo menos como uma influência, e tingiria fortemente a doutrina cátara. O mesmo século XXII que assistiu ao zelo religioso expressado nas Cruzadas foi também, paradoxalmente, uma época de crescente desilusão com a Igreja Católica e com as maneiras terrenas do clero. Desde suas origens humildes como uma entre as muitas seitas do Império Romano, a Igreja tornara-se uma instituição de riqueza e privilégio. Com frequência, padres e bispos viviam no luxo, ao mesmo tempo que se entregavam a práticas espúrias tais como perdoar pecados em troca de dinheiro. Em grande parte, foi como reação contra o fausto e
o esplendor indecorosos da Igreja o catarismo se enraizou, principalmente no norte da Itália, e depois por todo o sul da França. Com medo da repressão da Igreja, os primeiros cátaros mantiveram sua fé em segredo. Em pouco tempo, porém, a seita atraiu tantos seguidores, que pôde passar a agir abertamente sob a proteção de senhores feudais poderosos, capazes de desafiar o papa. No sul da França, o catarismo e outro movimento vagamente semelhante, conhecido como waldensianismo, tornaram-se, na prática as religiões oficiais. As teologias cátara e católica estavam em nítido conflito. Do ponto de vista católico, a salvação vinha através do sofrimento físico de Jesus, um ser espiritual que havia ingressado na carne de modo a redimir a humanidade morrendo na cruz. Segundo os ´cátaros, a redenção da humanidade não vinha da morte de Cristo, e sim do exemplo de vida que ele levou à terra. Os cátaros negavam também que o mundo físico imperfeito pudesse ter sido criado por um Deus perfeito; tal como os gnósticos e maniqueístas antes deles, os cátaros rejeitavam a visão bíblica da criação e, com efeito, todo o Antigo Testamento. Em vez disso, acreditavam que a terra e a humanidade haviam sido moldadas pelo demônio. Um cátaro alcançava a salvação mediante o conhecimento da verdadeira origem e destino da humanidade e através da renúncia ao mundo satânico da carne, de uma vida de abstinência e pobreza. Ao contrário dos católicos, os cátaros acreditavam na reencarnação; se uma pessoa fracassasse em uma vida, alegavam, teria a oportunidade de ter sucesso em outra. Rejeitavam o batismo, a cruz como símbolo, a confissão individual e todos os ornamentos religiosos. Os serviços eclesiásticos eram simples e podiam ser realizados em qualquer parte. Consistiam de uma leitura do evangelho, um sermão breve, uma benção e a Oração do Senhor. A abordagem “de volta básico” da liturgia feita pelos cátaros antecipou a simplicidade de algumas das seitas protestantes de épocas posteriores. O catarismo tinha duas classes, ou graus. Os leigos eram conhecidos como crentes. Não se exigia que seguissem as rígidas regras de abstinência reservadas para os perfecti ou bonhommes (homens bons) eleitos, que formavam a hierarquia da igreja cátara. Qualquer pessoa que desejasse juntar-se aos perfecti, homem ou mulher, teria de enfrentar um período de prova nunca inferior a dois anos. Durante esse tempo, a pessoa renunciava a todos os bens terrenos, vivia comunalmente com outros perfecti e se abstinha de vinho e carne. Para evitar as tentações da carne, os iniciandos não podiam ter qualquer contato com o sexo oposto e faziam um voto de jamais dormir nus. No final do período de prova, o noviço recebia o consolamentum, um rito que combinava características de batismo, confirmação e ordenação, conduzido em público diante de uma grande congregação. Nesse rito, o iniciando respondia a uma série de perguntas feitas por um veterano da igreja, e depois prometia uma vida de pobreza, abstinência e obediência a Deus e aos evangelhos. A Igreja Católica fez o que pôde para combater a expansão da heresia cátara. Em primeiro lugar, tentou atrair os cátaros de volta ao rebanho despachando missões de catequese formadas por monges cistercianos, lideradas pelo chefe da ordem, o futuro são Bernardo de Clairvaux. Os monges fizeram poucas conversões, e a recalcitrância dos hereges desanimou Bernardo, cujos esforços para alcançá-los foram respondidos com vaias e apupos nas ruas de Toulouse. As regiões cátaras do sul da França estavam sob o controle político do conde Raymond VI de Toulouse, também seguidor da fé cátara. O diálogo entre as autoridades cátaras e as católicas interrompeu-se quando um escudeiro do conde assassinou um enviado especial do papa Inocêncio III a Toulouse. O assassinato deixou o papa tão enraivecido que ele, literalmente, não conseguiu falar durante dois dias. Então, ele declarou que os cátaros eram “piores que o próprio sarraceno” (termo cristão para os muçulmanos) e convocou uma cruzada para varrer a heresia de uma vez por todas. Seu apelo foi respondido com presteza por muitos cavaleiros franceses, levados a agir por diversas razões. Tratava-se da primeira cruzada dirigida contra o inimigo na Europa, de modo que não exigia nem o tempo, nem as despesas necessárias para uma cruzada na Terra Santa. Também, além da salvação prometida a todos os que se unissem à cruzada por quarenta dia pelo menos, os recrutas podiam contar com a posse dos despojos materiais do território conquistado. A cruzada foi lançada em 1209, com 20.000 cavaleiros montados à frente de um enorme exército. Em sua primeira grande vitória, os cruzados tomaram a cidade de Beziers e massacraram quase todos os habitantes, entre eles muitos que se consideravam católicos leais. Quando perguntaram ao legado papal como distinguir entre hereges e católicos, dizem que ele respondeu: “Matem-nos a todos. Deus se encarregará dos seus.” Contudo, a fé cátara era forte e as legiões papais enfrentaram uma longa luta. Quase quarenta anos se passaram antes que os cruzados esmagassem a última resistência armada e células secretas de fiéis cátaros sobreviveram por mais meio século. Uma medida do peso do catarismo sobre seus seguidores pode ser vista na disposição destes para o martírio. Milhares de perfecti, diante da opção entre a morte e a conversão ao catolicismo, negaram-se a renunciar a sua fé. Morreram às vezes de fome, acorrentados às paredes de calabouços, mas em geral queimados publicamente em grande piras. Diante da perseguição e da tortura, alguns optaram pelo rito cátaro da Endura, uma forma santificada de suicídio pelo jejum. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista e ensaísta. Autor de 13 livros publicados. Pela Madras editora, “Ventos fortes, Raízes profundas”, entre outros. Ganhador de 18 prêmios literários de âmbito nacional. É Rosacruz – Grau Superior Iluminati. (61) 9.8240-6270

domingo, 5 de julho de 2020

QUAL TERIA SIDO A PRIMEIRA PALAVRA PROFERIDA PELO HOMEM? (*)

Se um dia a ciência viesse a reconstruir o vocábulo inaugural, ele designaria o espanto da vida consigo mesma. A frase a ser articulada, talvez milhares de anos mais tarde, ampliaria esse sentimento: até hoje todas as palavras, em todas as frases, circulam em torno da mesma inquietude. Os homens se comunicam para comunicar sua perplexidade e, dentro dela, envolvidos como crisálidas em seus casulos, o medo e a esperança. Nos milênios sucessivos, desde o primeiro grito de espanto do homem, disciplinamos os ruídos da traquéia e treinamos a garganta, a língua e os lábios para a linguagem. É essa condensação extrema que confere ao aforismo as arestas cortantes que inevitavelmente ferem o leitor. Exprimindo o que à primeira vista muitas vezes parece ser uma generalização abusiva, o aforismo requer “reflexão”; ele desestabiliza as certezas cotidianas cristalizadas em frases feitas e, à luz de seu brilho repentino, apresenta aspectos da realidade até então ignorados. Somos transição, somos processo. E isso nos perturba. O fluxo de dias e anos, décadas, serve para crescer e acumular, não só perder e limitar. Dessa perspectiva nos tornaremos senhores, não servos. Pessoas, não pequenos animais atordoados que correm sem saber ao certo por quê. Se meu leitor e eu acertarmos nosso tom recíproco, este monólogo inicial será um diálogo – ainda que eu jamais venha a contemplar o rosto do outro que afinal se torna parte de mim. Então a minha arte terá atingido algum tipo de objetivo. A todos vocês, leitores, desejo que Deus desperte sempre seus sonhos adormecidos e lhes dê coragem, energia e serenidade para conquistá-los. (*) EUGENIO SANTANA é escritor e jornalista; ensaísta, biógrafo, revisor de texto, redator publicitário, agente literário e gestor editorial. Autor de 12 (doze) livros publicados. Detentor de 18 prêmios literários, em âmbito nacional. (61) 9.8240-6270 Whatsapp. email: autoreugeniosantana9@gmail.com