domingo, 5 de julho de 2020
QUAL TERIA SIDO A PRIMEIRA PALAVRA PROFERIDA PELO HOMEM? (*)
Se um dia a ciência viesse a reconstruir o vocábulo inaugural, ele designaria o espanto da vida consigo mesma. A frase a ser articulada, talvez milhares de anos mais tarde, ampliaria esse sentimento: até hoje todas as palavras, em todas as frases, circulam em torno da mesma inquietude. Os homens se comunicam para comunicar sua perplexidade e, dentro dela, envolvidos como crisálidas em seus casulos, o medo e a esperança.
Nos milênios sucessivos, desde o primeiro grito de espanto do homem, disciplinamos os ruídos da traquéia e treinamos a garganta, a língua e os lábios para a linguagem.
É essa condensação extrema que confere ao aforismo as arestas cortantes que inevitavelmente ferem o leitor. Exprimindo o que à primeira vista muitas vezes parece ser uma generalização abusiva, o aforismo requer “reflexão”; ele desestabiliza as certezas cotidianas cristalizadas em frases feitas e, à luz de seu brilho repentino, apresenta aspectos da realidade até então ignorados.
Somos transição, somos processo. E isso nos perturba. O fluxo de dias e anos, décadas, serve para crescer e acumular, não só perder e limitar. Dessa perspectiva nos tornaremos senhores, não servos. Pessoas, não pequenos animais atordoados que correm sem saber ao certo por quê.
Se meu leitor e eu acertarmos nosso tom recíproco, este monólogo inicial será um diálogo – ainda que eu jamais venha a contemplar o rosto do outro que afinal se torna parte de mim.
Então a minha arte terá atingido algum tipo de objetivo.
A todos vocês, leitores, desejo que Deus desperte sempre seus sonhos adormecidos e lhes dê coragem, energia e serenidade para conquistá-los.
(*) EUGENIO SANTANA é escritor e jornalista; ensaísta, biógrafo, revisor de texto, redator publicitário, agente literário e gestor editorial. Autor de 12 (doze) livros publicados. Detentor de 18 prêmios literários, em âmbito nacional. (61) 9.8240-6270 Whatsapp. email: autoreugeniosantana9@gmail.com
terça-feira, 30 de junho de 2020
SUTIS NUANCES DO AMOR (*)
As coisas incomensuráveis habitam as pequenas delicadezas do amor. Estão nas miudezas e nos gestos cotidianos dos quais nem nos damos conta; nos pequenos desejos, na mão pousada sobre ombros descansados, nas pontas dos dedos que deslizam na nuca amada, na pipoca dividida, nos abraços despretensiosos, na pia do banheiro ou nos beijos dados na cozinha.
Estes pequenos gestos e abraços engolem o sexo mais indomado e o presente mais caro. Não que o sexo e o presente mais lindo não sejam bem-vindos, mas as pequenas delicadezas têm um poder incrível de sobreviver ao tempo. A certeza da conversa a qualquer tempo é ainda mais reveladora e prazerosa, é ela quem nos afasta da solidão das multidões, que nos transmite certezas, se é que estas existem, de que as coisas seguem por um caminho quase perfeito.
O riso solto e sem protocolos conseguidos com o aumento da intimidade, sem os quais a gente murcha um pouco, está nestas pequenas delicadezas. São estas miudezas do amor que nos engrandecem e muitas vezes a gente sequer se dá conta disto. O amor é cheio de vocações desconhecidas e conexões profundas e delicadas. Pequenas delicadezas são na verdade a mais profunda forma de amor e que nos é revelada, também, em pequenas coisas.
Há momentos na vida em que ficamos por um triz, temos vontade de chorar, gritar, bater; do mesmo modo temos vontade de dividir alegrias, belezas, conquistas, mas quando vamos desmoronar queremos conosco ou do outro lado da linha, aquela que dividiu com a gente as pequenas delicadezas; é nesta pessoa que pensamos, é neste colo que queremos descansar. É naquela conexão profunda e delicada que mora o sossego dos nossos anseios.
Às vezes esta pessoa só precisa dizer um “alô” para o mundo ficar reconhecível outra vez. É que as coisas incomensuráveis da vida moram nas lembranças, gestos e amores gentis.
(*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, revisor de texto, relações públicas e gestor editorial. Autor de 12 (doze) livros publicados. (61) 9.8240-6270 WhatsApp.
ROSAS RÚBIDAS PARA BÁRBARA - A MULHER (*)
Onde está ela? Onde está aquela que viverá comigo todas as aventuras do corpo e do coração? E também da alma. Aquela que comigo construirá a alta torre da vida partilhada? Há entre vós quem não atravesse mares, desertos, montanhas e vales para encontrar-se com a mulher que sua alma escolheu?
Cogito na possibilidade de todas as mulheres do mundo amalgamadas numa só expressão feminina. Por volta de 1968, iniciou-se de vez a impressão gráfica em cores nas revistas brasileiras. Descobri ao acaso este sugestivo título, acima epigrafado, numa publicação muito lida naquela época. Desde então, volta e meia, essa frase platonicamente romântica adeja minha cabeça, instigando uma lacônica crônica.
Vasta experiência concernente a tão decantada alma feminina – expressão de Lilith-Eva, sei lá... Não sei porque nesse momento aflora-me a Crônica do Amor Louco; breves passeios sobre as memórias de Casanova me alegram o espírito e numa perplexidade de Adônis de Paracatu, um Alain Delon revigorado, e com o olho de Hórus, me lembro de um comentário pleno de conteúdo de uma amiga que se referiu a mim dizendo: “você me lembra o personagem Dom Juan – interessante filme estrelado por Johnny Deep e Marlon Brando”.
Inefáveis lembranças... Cada experiência traz em si o sabor singular do verdadeiro conhecimento. E conhecer é saborear. Insofismável iniciação: compartilhei romances via corpo, alma e coração com um número razoável de mulheres especiais que cruzaram os meus caminhos. Delas recebi lições inesquecíveis de vida, luz e amor e o aperfeiçoamento da libido, o despertar da kundalini fez a serpente emplumada levitar e, de quebra, algumas performances básicas do Kama-Sutra foram incorporadas. E quanto mais as conheço e vivencio, mais as considero um planeta inexplorado de seres mutantes. Muito embora, um famigerado poeta disse antes: “as mulheres foram feitas para serem amadas e não para serem compreendidas”. Sinceramente, faz sentido. Aqueles ou aquelas que insistirem em ir mais fundo no tema, sugiro a leitura do ensaio para as mulheres, escrito por mim, em 9/9/1999.
História completa com riqueza de detalhes e comprovados dados científicos constam do insólito romance autobiográfico “Os Pessegueiros Florescem no Outono”, de nossa autoria, a ser publicado brevemente. Aguardem-me, adoráveis leitores...
Reflito: qual dessas protagonistas de minha vida, mais se aproximou de constituir-se em minha alma-irmã? Humano, demasiadamente humano, tenho minhas dúvidas cruciais, inseguranças e incertezas, quero ter à disposição um leitmotiv e uma nova utopia, porque carrego comigo, na bagagem do coração, idêntica filosofia de um amigo dos velhos tempos, que sempre me repetia esse surrado lugar-comum: sou movido a estímulo.
Certeza, uma única: O Amor é o Caminho. E o seu poder, absoluto. O amor é a Perfeição. Não precisamos de milenares gurus para absorver esta conclusão definitiva. O Mestre da Luz e Sol do Verbo: Jesus – O Cristo Cósmico nos legou este fundamental e maravilhoso ensinamento.
Em “A Ponte para o Sempre”, meu querido autor e confrade Richard Bach, encontrou seu par perfeito. A busca obstinada teve um final feliz: o encontro com sua alma-irmã Leslie Parris. Apesar das críticas irrelevantes, estou seguindo suas pegadas, meu caro Richard. Só posso dizer que só me arrependo daquilo que não fiz. A vida é muito breve para atos mesquinhos, hipocrisia, mediocridade e falso moralismo.
Nas asas da memória arquivei o recado especial do Holandês Voador: “aqueles que mais procuram o AMOR já estão plenos dele”. Não procuro uma mulher “bárbara”, mas Bárbara – a mulher. Sei que toda luta é vã mal começa a manhã. E a guerra só está perdida quando rompemos o último fio de prata do invólucro material ou corpo físico. Enquanto a vida ávida e a fome de viver, estiver impulsionando o coração, estarei na estrada – como diria Bob Dylan -, à sua procura flor-estrela, Asa guardiã; Vênus-Afrodite. Leal e única companheira da última jornada.
Gostaria, sinceramente, de apostar, hoje, todas as minhas fichas em um novo amor platônico-shakespereano.
Rosas Vermelhas para Bárbara... Impressões da infância e do início da adolescência de um mineiro-menino. Sinais vitais de êxtase nos complexos caminhos de Eros. 1971-1975... Não sei ao certo, em que ano o episódio aconteceu. Só posso afirmar que ao folhear aleatoriamente aquela romântica revista de fotonovelas, deparei com uma estória que marcou a minha vida: uma jornada do ser à procura do par ideal. Hoje quero despertar e acreditar que é possível encontrar “Bárbara” – a mulher. E viver plenamente (asa de um sonho?) os altos e baixos de um grande, único, verdadeiro e definitivo amor.
Quem é essa Vênus-Afrodite, especial mulher, disposta a receber o meu buquê de rosas-vermelhas e ser feliz até que outra vida nos espere?...
Finalizo com as belas palavras de Rilke: “Ainda não sabias? Lança o vazio aprisionado nos braços para os espaços que respiramos! Talvez os pássaros sintam, num vôo de maior intimidade, o ar mais amplo. As primaveras se valem de ti. Muitas estrelas te dão a coragem para percebê-las. Ao passares por uma janela aberta, um violino se entregou a ti. Será que respondeste? Não estavas sempre distraído à espera, como se tudo anunciasse uma amada?”.
(*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, revisor de texto e Biógrafo. Autor de onze livros publicados. (61) 9.8240-6270
segunda-feira, 22 de junho de 2020
PASSOU TUDO... (*)
Sofrimento, remorso, expectativa, ilusões, crenças, convicções, incertezas, solidões, saudades. Resta o homem velho ESQUECIDO, abandonado, ignorado; mergulhado no ostracismo. Um Rimbaud na Abissínia, um E.M.Cioran exilado em Paris; e, por fim, vejo Edgar - O Allan Poe - sussurando Lenora, Lenora e na janela pousado, o Corvo - com olhar melancólico. Assim como nasce, o ser fenece como o Crepúsculo e a Aurora embora eu tenha dúvidas sobre a imortalidade da alma. Holístico, tenho a face da Natureza humana tatuada em meus olhos embaçados. Ajoelho e choro. Oro. Sei que o Arquétipo de Hórus é meu seguidor e me persegue uma vontade irresistível de voar e transcender. Gratidão à Terra pelo retorno ao pó... (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, assessor de imprensa, redator publicitário, revisor de texto e gestor editorial; agente literário. Autor de 11 (onze) livros publicados: conto, crônica, ensaio, poesia, romance e biografia. Atualmente, radicado em Brasília-DF. (61) 9.8240-6270 WhatsApp.
sábado, 13 de junho de 2020
QUEM É O GUARDIÃO DA PALAVRA ? (*)
Eis a essência da sombra: o princípio e o fim da tua procura catártica. Aqui, as pessoas se confundem, se refugiam, se despem, se questionam: cobras, lagartos, colibris, borboletas, morcegos; aqueles que habitam as teias espessas do anonimato e formam tentáculos de Ariadne. Individualmente, cada um pode ser o que quiser, fazer o que quiser: os olhos na tela e o mundo nas mãos. Não interessa de onde venha ou para onde vá: ninguém passa impunemente por esse espaço de fragmentos, miscelâneas, economia verbal; linguagem coloquial e monossilábica; artigos prolixos – pró-lixos, jurássicos ou não – artigos longos e enfadonhos, palavrórios, estilhaços filosóficos, estilhaços oníricos e holísticos... Aqui sobrepõe e sobressai o livre-arbítrio e nenhuma mordaça jamais nos alcançará. Não acreditamos em almas-gêmeas. Algemas explodidas, implodidas. Este é o território inóspito do caos. É também solo do sagrado, onde reinam homens e mulheres, anciãos e bebês, carne e osso, Deus e o “encardido”. Onde (re)encontro você. Onde transcendo. E atinjo o zênite e o self e, por vezes, encontro a mimesmo. Você me questiona quem sou e, no instante em que sua curiosidade beira a insanidade, torno-me o nítido e letal veneno do seu temor e te convido a voar por meio de minha alma alada. Eu sou o guardião das sombras esquecidas e o Anjo da Luz revisitado. A nau é frágil? Naufrágio. Ícaro que inibe e instiga. Ânfora com sede. O ponto de exclamação. Junto ocidente e oriente; vida e transição; yin e yang; caos, utopia e paixão. Crepúsculos e Auroras. Nasço a cada findar de um novo dia. Permaneço pequeno, ínfimo. O olhar, ainda gótico. Orgulho-me de ter crescido envolto em névoa e neblina de Arte e Cultura. Lamento meu piano fechado, minha flauta quebrada, meu violino de cordas partidas. Meu pulo impreciso. Decidi viver do limbo virtual e real, arquiteto da pá lavra... basta-me existir e persistir e seguir resiliente aonde as estradas são janelas do Nada. Nadar. Nadir? Inspiro quando leio, escravo enquanto escrevo. Os dedos e os olhos sempre inquietos, a cabeça pulsante, buscando a ousadia, criativo e perfeccionista. E o pássaro voa, sobrevoando pudores, sentindo outros odores, alçando vôos inimagináveis; cantando para deixar brotar a Utopia. Aproxime-se! Há repulsa e irresistível atração.
(*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, gestor editorial, assessor de imprensa, relações públicas, redator publicitário, biógrafo, ornitólogo e blogueiro; Ex Superintendente de Imprensa no Governo do Rio de Janeiro. Onze livros publicados. Atualmente, radicado em Brasília, DF. (61) 9.8240-6270. Propenso ao retorno à Brasília, por conta do Coronavírus. Recomeço...
domingo, 24 de maio de 2020
A PANDEMIA DOS IMBECIS: O QUE A CONECTIVIDADE TEM A VER COM ISTO? (*)
Einstein nos alerta sobre duas coisas que são infinitas: o universo e a estupidez humana. Em épocas de defesas ferrenhas às próprias opiniões, ninguém se assume ignorante. Inevitavelmente, a pessoa mesmo frente a evidências do contrário daquilo que ela acredita não se diz burro e ainda nega aquela afirmação. Por isso, não à toa, encontramos pessoas em nossos círculos sociais com acesso à informação, instruídas e viajadas colocando opiniões que fogem completamente da lógica e bom senso. Esse comportamento é, na verdade, um fenômeno social, que torna justificável o fato de cérebros sadios e dotados de recursos fazerem escolhas tão... burras.
“No âmbito clínico, a burrice é a pior doença, por ser incurável”, esta é a conclusão dos estudos do psicólogo italiano Luigi Anolli, um dos especialistas que tentam entender melhor como esse “bloqueio” nos afeta fisiologicamente. Evidentemente, a burrice hoje é um fato indiscutível. O crescimento da anticiência, posturas fanáticas, pensamentos fascistas e até mesmo religiões que prometem milagres nos fazem compreender que há um contexto muito mais denso dessa realidade. A partir dessa percepção, entendemos que a burrice se tornou uma epidemia e afeta toda a espécie humana com danos reais à espécie. Por seu aspecto risível, a burrice foi sempre subestimada, porém hoje se mostra como uma ameaça, principalmente no âmbito político em que decisões tomadas têm rumos irreversíveis. Como entender que há pessoas inteligentes que, vez por outra, têm pensamentos burros? E o mais importante, é possível reverter isso? A definição de Aristóteles que homem é um ser racional, com a capacidade de examinar diversas variáveis e chegar a conclusões importantes e elaboradas, que guiou pensamentos do Iluminismo e Descartes, parece estar em desuso por posturas negacionistas e completamente fechadas em si.
Para ajudar neste embate, o historiador e economista Carlo Cipolla, já citado anteriormente, listou cinco “leis fundamentais da burrice” e destaca o aspecto contagioso deste mal. Isso explica como populações inteiras (a exemplo da Alemanha nazista ou na Itália fascista) são facilmente condicionadas a objetivos insanos. Como exemplo, podemos tomar o caso de não muito tempo, em que após o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sugestionar que a ingestão de desinfetantes poderia matar o vírus COVID-19, o centro de controle de envenenamento de Nova York recebeu 30 chamadas relacionadas aos produtos nas 18 horas seguintes à declaração.
Outro ponto fundamental, segundo Carlo Cipolla, é que o burro é a pessoa mais perigosa que existe. Grandes pensadores também concordam com isso, como o caso de Ruy Barbosa que atesta a periculosidade da burrice ao afirmar que “A chave misteriosa das desgraças que nos afligem é esta; e somente esta: a Ignorância! Ela é a mãe da servilidade e da miséria”. Goethe diz que “não há nada mais terrível que a Ignorância” e de fato o mundo nos mostra (e será ainda mais incisivo em afirmar isso à humanidade) que nossas ações individuais têm impacto direto em tudo e em todos.
A psicologia tem um termo para explicar essa dissonância cognitiva que transforma a máquina mais incrível da natureza em pura estupidez. Nomeada de “Avareza cognitiva”, esta teoria surgiu em 1984 pelos psicólogos Susan Fiske e Shelley e hoje representa o modelo predominante de cognição social. A teoria afirma que o processamento de informação por parte do nosso cérebro está sujeito a determinados limites para tratar simultaneamente as diversas variáveis do ambiente. O cérebro seleciona uma pequena parcela destes estímulos que podem ser atendidos e desconsidera a imensa maioria dos elementos presentes. Além disso, trata de forma bastante superficial a informação, favorecendo a utilização de atalhos mentais durante as operações de processamento para “autocompletar” as percepções. Ou seja, nosso cérebro é naturalmente preguiçoso e fará de tudo para poupar energia e chegar as mais fáceis conclusões. Se juntarmos essa característica do cérebro junto com nossa sociedade organizada em “links”, em cliques, essa geração que tudo se resolve com um botão, uma pílula etc. em que temos uma noção supérflua de tudo, porém aprofundada de nada, podemos concluir que estamos atrofiando nosso cérebro ao invés de exercitá-lo.
Para comprovar essa teoria, um estudo de Leonid Rozenblit e Frank Keil, psicólogos da universidade americana de Yale, aponta como as pessoas acreditam que realmente sabem mais do que realmente sabem sobre tudo. Neste experimento, eles convidaram as pessoas a explicar detalhadamente algo que acreditam saber como funciona. O estudo identificou o fenômeno batizado de “ilusão da profundidade de explicação”, em que mostrou que quando as pessoas são forçadas a explicar, elas se viam obrigadas a reconhecer que conheciam muito menos um assunto do que acreditavam. Esses são os pequenos atalhos mentais para disfarçar de nós mesmos a dimensão da nossa ignorância.
Outra pesquisa, do professor Philip Fernbach, da Universidade do Colorado, tentou uma abordagem mais próxima da nossa realidade para explicar como isso acontece nas pessoas. O estudo foi feito com americanos na internet sobre assuntos polêmicos, como sanções ao Irã, reforma do sistema de saúde e soluções para reduzir o aquecimento global. Dois grupos foram separados, em que no primeiro as pessoas foram convidadas apenas a expor sua visão sobre determinado tema, já o segundo grupo tinha algo a mais para fazer: precisavam explicar passo a passo – do começo ao fim – o caminho pelo qual a política que defendiam produziria o resultado que desejavam. Os resultados mostraram que as pessoas do primeiro grupo mantiveram suas posições inalteradas. Já os que precisaram explicar em detalhes suas visões, acabaram adotando posturas menos radicais. A Avareza Cognitiva nos condiciona a não obter profundidade em nossos argumentos.
O homem vive em sociedade. Portanto o fator social é como se fosse o organismo condutor da pandemia da burrice, sendo um ponto fundamental. A sociedade nos contamina e tratá-la não é simples. Neste aspecto, é interessante a interpretação do tempo em que vivemos feita pelo sociólogo coreano Byung-chul Han, em seu ensaio Sociedade do Cansaço. Ele defende que nossos dias são marcados pelo excesso de positividade. Isso nos torna exaustos demais para agir e nos coloca como “empreendedores de nós mesmos”, criando uma “sociedade do desempenho”. Nela, o status quo faz você acreditar que é capaz (como o slogan da campanha presidencial de Barack Obama em 2008: “Yes, we can” - “Sim, nós podemos”). Ao contrário da sociedade de nossos pais, chamada de “Sociedade Disciplinar” (que era regida pelo o medo e negatividade), a Sociedade do desempenho tem a positividade como pano de fundo, que, segundo o autor, gera pessoas depressivas e fracassadas.
Anteriormente falamos da capacidade de hesitar como base do raciocínio filosófico. Neste aspecto, a visão de Byung-chul Han coincide ao afirmar que vivemos um excesso de estímulos que geram estados psíquicos doentes por nos impedir de descansar. Nietzsche afirma que “Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie”, e atualmente o repouso é algo condenável do ponto de vista de produção. A “pressão do desempenho” é o que causa o esgotamento porque neste novo modelo precisamos obedecer somente a nós mesmos. Segundo Byung-chul “a depressão é a expressão patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo”.
Se olharmos os dados alarmantes do estado da saúde mental da população mundial, veremos que faz sentido essa interpretação. Não é normal que, segundo os últimos relatórios da OMS, o suicídio cause mais mortes de jovens que homicídios e guerras. Não é normal uma sociedade cuja depressão seja a principal causa de incapacidade em todo o mundo e contribui de forma importante para a carga global de doenças, segundo a OPAS/OMS. Estima-se que 350 milhões de pessoas pelo planeta sofram de depressão, o que corresponde a 5% da população mundial. As crises contemporâneas apenas evidenciam como as desigualdades e as injustiças existem em nossa sociedade e devemos aproveitar que a ferida está aberta para tratar e curar essas chagas.
O que não precisamos são de brasileiros tentando explicar o nazismo para a Alemanha, pessoas contestando a ditadura à historiadores ou ainda recomendações médicas por aqueles que não tem nenhuma ligação com a área da saúde. Esse é o triunfo da burrice. É o estágio em que existe um organismo doente e que começa a se prejudicar. Nesta trilha, existem dois caminhos. O da dor e da consciência. Não entraremos no mérito de como a proliferação de idiotas se deu, precisamos nos concentrar em encontrar uma vacina para esse ódio e ignorância que tem se tornado comum e que tem sido aplaudido.
Precisamos ser anticorpos para criar imunidade. E ser anticorpo é resistir, não se calar, tentar ajudar. É através do exemplo converter, demonstrar. É buscar a empatia ao invés do embate, remover a intolerância e entender que somos parte de um todo extremamente diverso. Mais do que nunca a ação individual conta e vai além, ela reflete. Em meio à loucura do dia a dia, aprender hesitar, refletir. Comece esmiuçando suas visões políticas, explique passo a passo daquilo que você defende e anote possíveis dúvidas e informações complementares que sejam necessárias, depois pesquise na internet o que especialistas falam sobre suas dúvidas. Abra-se para aprender, para mudar. Não há vergonha alguma em mudar de opinião, vergonha de verdade é viver eternamente preso às próprias convicções. Nesta epidemia, a cura somos nós mesmos e isso torna tudo mais assustador.
(*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista e ensaísta. Autor de onze livros publicados. (61) 9.8240-6270
sábado, 23 de maio de 2020
MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA (*)
Há milênios surgiu a linguagem humana; no entanto, não há registros que digam qual foi a primeira palavra a surgir. Dessa forma, começam os mistérios dos signos misturados ao universo das palavras que dão uma única certeza: não há humanidade sem uma língua, e – mesmo tendo a existência de milhares de línguas com as mais complexas peculiaridades - é ela quem dá o verdadeiro significado do que todos somos.
A língua portuguesa – língua materna que abriga e envolve sem distinção – nasceu em Portugal, e é falada por mais de 200 milhões de pessoas em todos os continentes do planeta. Não há como negar que – para os falantes dessa língua – tudo se transforma a partir dela: pensamentos, sentimentos e criações afirmam e expressam a identidade de um povo; fazendo o ser aparecer como realmente o é. Um verdadeiro retrato em mil palavras; uma pátria, em intensos e diversos signos.
O projeto arquitetônico do Prédio da Estação da Luz – em São Paulo, cidade que tem a maior população de falantes do português no mundo - abriga toda a mistura entre as imagens, sons e palavras existentes na essência brasileira. Inaugurado em março de 2006, o Museu da Língua Portuguesa – patrimônio histórico do Século XIX - recebeu nos três primeiros anos mais de 1 milhão de pessoas, tornando-o um dos museus mais visitados do Brasil e da América do Sul. Criado para a valorização e difusão do nosso idioma - patrimônio imaterial -, apresenta um museu diferente e altamente tecnológico das demais instituições museológicas do pais e do mundo. Os recursos interativos para a apresentação mostram a língua como peça chave e fundadora da cultura brasileira; celebram e valorizam a língua portuguesa – na plenitude da diversidade - resgatando origens, histórias e influência sofridas. E mais: o dinamismo e a interatividade aproximam o cidadão usuário da língua, mostrando que além de proprietário dessa cultura, é , também, agente modificador do idioma. Cursos, palestras, seminários sobre a língua portuguesa e as exposições temporárias oportunizam os visitantes – das diversas faixas etárias – a um contato mais íntimo com as palavras que fazem histórias.
Museu? Não. Não tem cara. Talvez – se buscarmos na etimologia da palavra – templo seria mais adequado por ser um local onde – antes – as musas exercitavam a poesia; cultivava-se a academia e a biblioteca. Um templo com técnicas modernas que proporcionam um (re)conhecimento da língua portuguesa de forma única e intensa. A tecnologia no museu permite – em sua instalações – a transmissão, o armazenamento, a disseminação e a otimização de informações que vão desde a história do idioma , passando pela experimentação da língua e fechando com as exposições temporárias.
Com três andares, o mergulho no universo das palavras começa no elevador do museu, uma vez que a estrutura de vidro permite a visão total da “Árvore das Palavras” : escultura com palavras do idioma que contribuíram para a formação do português e do português falado no Brasil, palavras em português e a representação de objetos e animais. O visual é embalado pelo mantra - composto por Arnaldo Antunes - que repete as palavras língua e palavra em vários idiomas . O primeiro andar é o cantinho das exposições temporárias; o segundo é o espaço onde a tecnologia assume importante papel ao acolher os visitantes, recebendo-os com uma tela de 106 metros de extensão com projeções simultâneas, mais palavras cruzadas, linha do tempo, jogos etimológicos interativos, mapas dos falares; e o terceiro é um ambiente aconchegante para curtir a projeção de um filme sobre a origem da língua portuguesa e uma Praça da Língua , a qual envolve e emociona.
O Museu da Língua Portuguesa é um espaço onde a língua está sempre viva e em transformação; onde o encontro com a arte (en)canta e arrepia a alma; onde a experimentação do idioma é de fácil acesso e diferente; onde a tecnologia informa e transforma nossa principal cultura: a linguagem humana.
(*) BY EUGENIO SANTANA, escritor, jornalista, ensaísta. Autor de 11 livros publicados.
quarta-feira, 20 de maio de 2020
INTENSO, CORAJOSO, AUTÊNTICO (*)
O intenso quando ama, quando odeia (percebe-se duas vertentes extremas) ele o faz com muita sinceridade e muita fidelidade a si mesmo. Antes de tudo, o intenso é um egocêntrico por causa própria.
Ninguém dá jeito nas personalidades intensas. Ninguém muda a forma com que enxergam a vida, as pessoas, o mundo ao redor. Ninguém é capaz de fazer com que um intenso não viva sua intensidade até as entranhas.
Rir muito, chorar muito, permitir-se viver como se cada momento fosse o último; Prever que a vida é breve e mais breve ainda são os instantes em que podemos ser verdadeiramente livres para nortear nossas escolhas.
É corajoso ser intenso em um mundo tão raso e superficial como o nosso. Em um mundo onde nos julgam pelas roupas que vestimos e os lugares que frequentamos. Ser intenso requer autenticidade, requer ser tachado de louco. Sim, louco! O intenso expõe a olhos nus tudo o que sente e tudo o que pensa, e a sociedade não está adaptada para receber pessoas assim.
Mas há também que jogar farpas na intensidade. Não é só flores que permeiam o caminho de uma personalidade intensa. Há que colher muita dor e muitos espinhos. Por amar demais, por se doar demais, por sentir muito. Por sofrer a incompreensão dos que, pobres de afeto, não serão capazes de entender todo esse anseio e todo esse ardor sentimental que um intenso possui.
Não faz mal. Pedras fazem parte da caminhada. Ser uma pessoa intensa não é algo que se deva orgulhar. Há que ter muita, mas muita coragem de sentir-se só. Pobre amigo, não te compreenderão. Não entenderão tua sensibilidade. Nem tua inclinação para os sentimentos mais fortes. Nem tua abnegação e tua potente energia em tudo que faz.
Esqueça! Como um franciscano, estarás sozinho quando todos propagarem o amor raso e as falsas lágrimas. Estarás só completamente no meio da multidão porque ningué em entenderá teus sentimentos e em silêncio, não poderá compartilhar a tua forma de ver o mundo, pois os outros dirão: excêntrico!
(*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista e ensaísta. Autor de 11 livros publicados, "Ventos fortes, raízes profundas", Madras editora, "Encha-se de vida e continue escrevendo", Costelas felinas editora, entre outros.
sábado, 25 de abril de 2020
MESMICE, ZONA DE CONFORTO, ROTINA (*)
Gostar de rotina não é algo ruim. Precisamos dela para nortear nossas vidas, dar linearidade ao nosso cotidiano, nos tirando do caos e auxiliando-nos a dar foco às metas. A rotina é a nossa cura da ressaca, nossa obediência às regras, nossa submissão ao tempo, nossa dose de normalidade diária.
Sair da rotina, do óbvio, é um tanto doloroso para algumas pessoas. Arriscar-se numa atividade nova, atrasar-se mais que cinco minutos, um feriado no meio da semana (acredite: há quem não goste nem um pouco de feriado que tire da mesmice de uma semana de trabalho) nem sempre é fácil de encarar. Ainda mais pra quem trabalha com o método da agenda: acordar às seis, ler as notícias acompanhado de uma xícara de café - nem muito quente, nem frio, nem morno: acertar o ponto todas as vezes é crucial e rotineiro, por assim dizer - tomar um banho rápido, vestir-se e chegar no trabalho às oito. Nem sete e cinquenta e dois, nem sete e cinquenta e nove, muito menos oito e um. Oito. Trabalhar incessantemente, voltar pra casa (pelo mesmo caminho de sempre), assistir qualquer porcaria na televisão, dormir. Fim de semana é almoçar na mãe, ir ao cinema, voltar antes que escureça, dormir.
Pessoas assim não se permitem experimentar algo novo e ousado, por mais simples que seja. Por mais que a mídia tenha explorado e criticado positivamente aquela peça que está em cartaz todas as quartas, não é digno se dar ao luxo de fazer um programa cultural em plena quarta-feira. Amanhã é quinta, dia de labutar. Às oito em ponto. Por mais que delivery de pizza seja prático, rápido e barato, não custa nada explorar os demais restaurantes da cidade, levar a garota ou o garoto para degustar sushi, comida chinesa, tailandesa, ou churrasco gaúcho, que seja. Algo que não venha engordurado dentro de uma caixa de papelão.
Há quem não goste de acampar na praia mas que nunca sequer dormiu dentro de uma barraca e protege-se dos pés à cabeça do sol, da areia e da água salgada que resseca e quebra o cabelo. Tem gente que detesta balada, porque sempre frequentou a mesma casa noturna, que conta sempre com a presença dos mesmos Dj's, sempre com as mesmas pessoas. Há quem não goste de beber mas que nunca bebeu, que não goste de redes sociais e que sempre conservou a velha conta de email no Bol, que não goste de chuva mas que nunca sentiu a deliciosa sensação da água refrescando o corpo num dia de calor infernal, que não gosta de música brasileira mas que nunca se arriscou a ouvir os mestres da MPB - e que, inclusive, critica ferozmente o nosso funk mas que dança de forma frenética ao som do pop e do Hip Hop americano que faz apologia às drogas e ao sexo, com letras tão "proibidonas" quanto as do ritmo carioca.
De que vale a vida, penso eu, se não arriscarmos, nos entregarmos ao novo? Ter o coração partido e se fechar para um novo amor, permanecer num emprego que te causa infelicidade mas que garante estabilidade, dormir cedo sempre, nunca se atrasar, ir ao mesmo cinema, frequentar as mesmas praias, estranhar novas amizades: que perda de tempo.
Durante muito tempo fui um pouco assim, e confesso que ainda sou paranóico com horários e rotina, mas estou tentando mudar. Reconhecer que a minha bolha é limitada e que a zona de conforto não nos oferece nada mais que conforto é o primeiro passo. Toda revolução sofre um pouco de resistência no ínicio - mesmo que a revolução seja mudar de cafeteria ou de marca de sabão em pó - mas pequenas ações podem resultar em mudanças positivas na nossa vida.
Se o café está bem quente, eu acho bom. Se está morno, me incomodo um pouco, mas engulo feliz. Se tem suco, agradeço: mais um dia sem cafeína. Viver metodicamente é não viver, ou viver pela metade. Você por acaso sabe se existe vida após essa aqui? Melhor não desperdiçar. Hortelã pode ser bom, mas há uma infinidade de sabores por aí.
(*) EUGENIO SANTANA é Escritor, Jornalista, Gestor editorial, Ensaísta, Redator publicitário, Blogueiro, Biógrafo, Ornitólogo. Onze livros publicados. Autor, entre outros, de "Ventos Fortes, Raízes Profundas", autoajuda, Madras editora. (41) 9.9667-8484 WhatsApp
terça-feira, 7 de abril de 2020
OS PESSEGUEIROS FLORESCEM NO OUTONO (*)
Nem um carro, nem um transeunte, nem um gato, nem um cão. De vez em quando, nuvem de poeira. Por volta das 6 horas, sombras furtivas começarão a esgueirar-se ao longo das altas casas abandonadas. Sombras dobradas ou torcidas, lutando contra o vento selvagem. Dentro em pouco, tudo voltará a ser deserto de pedra e poeira. O inverno vale a pena ser vivido. É de um rigor incomparável. Não nos poupa nada, atormenta-nos, julga-nos. Obriga a nos olharmos bem de frente, no espelho, reduzidos à nossa expressão mais simples, ou seja, a nós mesmos, isto é, à angústia. Os homens que acotovelam as mesas de mármore fingem ver a TV. Silhuetas torcidas se agitam. A locutora sorri para os anjos e anuncia a chuva e o tempo bom. Poderia anunciar o fim do mundo, que os homens não se mexeriam, continuariam assim, como estátuas. São velhos, são nodosos, são oliveiras destacadas da terra. São indiferentes e impassíveis. Invejo-os. E o autor, bem entendido, na justa medida da minha loucura, se estou louco, da minha angústia, se estou angustiado, do meu delírio, se estou delirante. De todas as maneiras, da minha solidão. Estou só. Assim o quis. Detesto as multidões. -- E por que precisa de solidão? -- Na vida de cada um, chegam um momento e uma idade... Tenho quarenta e seis anos... Em que é necessário determinar a rota, fazer o balanço das nossas forças e das nossas fraquezas, das nossas derrotas e das nossas conquistas. Esse momento chegou, para mim. -- Mesmo no plano sentimental? -- Mesmo no plano sentimental. Quanto à alusão, não pense que ela me perturba. -- Pensa escrever outro livro? -- Sem dúvida. -- Um romance? -- Um romance autobiográfico. -- Detalhes? -- Só posso dizer que se intitulará “Os Pessegueiros Florescem no Outono.” -- Onde pensa refugiar-se? -- Não sei ainda, provavelmente em Paris, Barcelona, Veneza, Berlim, Viena ou Nova Iorque... ... A imprensa retira-se. (Janeiro de 2016) Neuroforia, isso não vem no dicionário. Durante três noites, Zoé sumiu. Uma noite voltou tranqüila, um pouco cansada. -- Acabou a neuroforia. Mais tarde, bem mais tarde, ela tentou explicar-me. Vou, por meu lado, tentar traduzir Zöé. Digamos que a neuroforia é uma força incoercível, louca, que nasce em nós, cresce e explode. Então, nada nos pode impedir de ir até ao limite de tudo. E mais além, se for possível. Então, a gente luta, bebe e come, faz o amor e toma drogas, fala e fala ainda. Isso pode durar de dez a cinqüenta horas, até que o doente fique exausto. É a fuga para diante, à frente da angústia. É a chance da última chance. É engolir o tempo e engolir o espaço. E negá-lo. Milhões de homens morrem intatos. Ou seja, pouquíssimos diferentes do que eram ao nascer. Sem terem conhecimento realmente de nada, nem experimentado, nem aprendido. Morrem intatos, sem jamais terem gasto o capital psíquico, a força real, o dinamismo que é dado a cada indivíduo. Um monte de carvão não consumido, que se deixa apodrecer sobre o chão da mina. Esses consumiram a vida. O amor não existe, eu juro. É hora de dizê-lo, de proclamá-lo por cima dos telhados, de anunciá-lo à trombeta. Ou, melhor, minha cara Zöé, o amor não existe senão para alguns. Eis o segredo. E você, com as suas recordações de pesadelo, não faz parte daqueles a quem foi dado o amor. Você, como milhares, como milhões de outros. Como todas as multidões imensas do planeta, que obedecem a reflexos condicionados. Todos alienados pela religião, pela mídia, pela TV, pelo cinema, pela literatura, a boa e a má, que miam a cada minuto, a cada segundo, o amor, sempre o amor. Não há amor, não há milagre para todos esses, desprovidos, condicionados, que vivem redondamente equivocados. O amor, o verdadeiro, é sempre trágico, exaltador. É uma sociedade secreta, cuja iniciação é cruel e complexa. É o que viviam Tristão e Isolda, com a espada no centro do leito. É o que perseguia Dom Quixote nas planícies da Mancha, essa caça à sombra, essa busca exaustiva e raramente triunfante. Donde a necessidade que eu tenho da literatura. É mais fácil e menos perigoso. Estamos tão doentes! A maioria não sabe, mas eu sei. -- Doente de quê, Sr. Mário? -- Não da alma, não da consciência, não do cérebro. Não, é demasiado vago. Doente de ternura, de generosidade, solidariedade e do dom de si mesmo. Doente de Deus, talvez, doente de amor sempre. Doente do corpo de todas as mulheres do mundo. Doente do tempo e doente do espaço na busca infrutífera de transcendência, consciência cósmica e uni/versos paralelos; doente das palavras, quando escrevo e não publico, das carícias, quando amo, dos lençóis, quando durmo. Doente da morte, cara doutora. -- E qual o seu remédio, caro escritor? Não há remédio, a não ser, sempre e sem parar, a contestação e o protesto. Tem de haver orvalhos e vaga-lumes no jardim que velam todas as noites enquanto os outros dormem e têm pesadelos. Tem de haver quem berre, ao vento, as verdades essenciais, quem despedace e quem destrua, quem ponha tudo em causa, minha bela. E não importa que meio, recomendável ou não. O importante é que deixe marcas. -- O senhor é um anarquista, Sr. Mário Lúcio. -- E a senhorita é uma imbecil! A caverna tem isto de bom, é confortável e ao abrigo dos outros. Cada qual pode ficar indefinidamente na sua caverna. É, aliás, o que todo mundo faz ou se esforça por fazer. Só eu resolvi sair da minha caverna, e há muito tempo. Ou, mais exatamente, errar de caverna em caverna, sabendo o que elas são, apreciando provisoriamente o seu conforto, mas sem nunca dormir nelas. Sei agora que as sombras não passam de sombras. Sei que lá fora é dia, mas que no interior das cavernas ainda posso representar e me contar histórias. Não sou mais um idiota. Tudo isto para lhe dizer que não existe pessoa dupla de você ou de quem quer seja. Que somos sós e únicos, e que é preciso acomodar-se a esse estado. Conseqüentemente, tenho ao mesmo tempo a tristeza e o prazer de lhe dizer, de lhe afirmar, de lhe jurar que o amor não existe. Fricciono-me. Sinto-me realmente novo, mudei de pele a neuroforia foi afogada. Volto para o quarto, visto-me. Trouxeram a bandeja com o chá, o doce, as torradas e a manteiga. Sirvo-me, bebo, como, o mundo me pertence. Estou pronto, gentleman bem barbeado e cheirando a lavanda. Zöé guarda a roupa suja na maleta. Termino o meu chá. Zöé pega a maleta, dirige-se para a saída, eu a sigo. Segui-la-ei até ao fim do mundo, e seguirei apenas a ela. Ela acende um cigarro, põe o carro em marcha. – ligue o aquecimento. O navio deixa o porto. É necessário morrer, quando os rostos já não nos fazem sinais, quando as vozes se tornam incompreensíveis. Então, é uma questão de dignidade. Não se morre quando um ser nos abandonou. Morre-se quando nós mesmos nos abandonamos. Estou aqui, não estou aqui. Não sei nada. Em suma, quero anular-me, mas com todas as garantias possíveis. Quero ter a certeza de que estou desertado. Sôo oco, sou um fantasma. E grito para dentro, como um filósofo-de-bolso: a vida é absurda, eu sou absurdo. Ando às voltas dentro das armadilhas da casa de vidro. Zöé, silenciosa, vigia-me. Assiste impassível à minha agonia, como boa conhecedora. Dêem-me garantias e eu me anulo, fico fora de combate. Silêncio. As vozes cochichadoras, destiladora s de bons conselhos, estão mudas. Cabe a mim arranjar-me, só, sempre só. E recomeçar uma vez mais a análise das razões, a procura das causas. Não se trata dos meus livros, mas da minha alma. Não me interessa a literatura, não me interessam os meus livros. “Todos os meus livros por um Reino!” O que eu procuro, é um reino. O que eu preciso é fazer um inventário, uma grande faxina. Jogar fora o que estiver demasiado usado, limpar e só guardar o essencial. Voltar ao essencial, ao absoluto, ao definitivo. Gostaria de ter a meu lado um ser com quem pudesse falar, a quem pudesse comunicar tudo o que vivo, tudo o que experimento. Zöé não basta. Com ela, são sempre monólogos paralelos. E onde está ela? Onde está aquela que viverá comigo todas as aventuras do corpo e do coração? E também do espírito. Aquela que comigo construirá a alta torre da solidão partilhada? Finalmente... Anna Sophia! O mesmo sentimento cada vez que a vejo e a mesma impotência para expressar essa espécie de paralisia que atinge. Poderia amá-la até à eternidade, amá-la até morrer, com todas as pisaduras e todas as feridas do amor. Com todas as ternuras do mundo e todos os impulsos que só esperam para brotar, verdadeiros e fortes. A estrada. Os faróis, os plátanos. Uma luz baça envolve a noite. Talvez vá chover. O silêncio repousado. O da satisfação e da paz. As palavras não significam mais nada. Pulverizaram-se. Recordar. A avareza da Memória. Recordar-se dos momentos, arquivá-los, guardá-los na cabeça... Explodi neste amor. Fiquei reduzido a pó. Mas para ressuscitar, para ressuscitar, enfim. E que tudo agora seja claro e legível. Quero ler-me em livro aberto... Os plátanos, a estrada, os faróis. A neblina branca, dissimulada... Era para melhor renascer. Ressuscitei... Uma transformação teve lugar quando eu já não esperava nada. Quando eu já pedia demissão... O amor que temos a fazer, a inventar. O império que precisamos edificar. Depressa, muito depressa. Precisamos lutar contra o tempo, agarrá-lo em velocidade. Ele é o inimigo. Um amor, isso existe? Existe, mas em estado bruto. É uma pedra, um objeto. E a gente não sabe o que fazer com essa pedra, embora tudo se possa inventar. É preciso dar um sentido ao amor, uma direção. Animá-lo, iluminá-lo. De outra forma, ele fenece, asfixiado pela sua própria inércia... Crer na virtude das palavras por si sós. Mas as palavras não têm virtude, a não ser a que se lhes quer dar. E que se lhes dá por impotência, por ociosidade, por covardia. Também é fácil fazer um filho. Supremo álibi para lutar contra o medo e a solidão. E a morte, também. Para existir por procuração. Para enganar. Um menino, isso permite, por instante, julgar-se imortal. Não mais fingir viver com os outros que fingem viver. Admitir que os meus antigos amores eram falhos, que não passavam de atos de egoísmo e de orgulho. Admitir que aquilo que a que eu chamava de “minha filosofia” nada mais era do que paródia de um pensar rigoroso. Admitir que o que eu escrevi nada mais foi do que o reflexo do carnaval em que vivi. A descrição hábil dessa partida de esconde-esconde de que eu brinco comigo mesmo há quarenta e sete anos, para não me confrontar com a “minha realidade”. Negar-me. Aprender a humildade. Um par de faróis me ilumina e me fustiga. O carro de Anna Sophia acaba de estacionar ao lado do meu. Fico imóvel, paralisado. Ela me vê. E eu, alucinado, vejo-a descer, vir para mim, inclinar-se para mim, beijar-me. E eu soluço. – Anna Sophia, Anna Sophia, meu amor... Os anjos da escuridão... Eles quase me aprisionaram em suas asas insanas e cruéis.
(*) EUGENIO SANTANA é jornalista, ensaísta e escritor. Redator-chefe da Revista Cenário Goiano, Revisor de textos do jornal Diário da Manhã, Editor-geral do Blog Guardião da Palavra e Superintendente de Imprensa no Rio de Janeiro. Autor de 11 livros publicados. Consultor de mídias sociais em Curitiba, PR. (41) 9.9667-8484 WhatsApp
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