terça-feira, 7 de abril de 2020

OS PESSEGUEIROS FLORESCEM NO OUTONO (*)

Nem um carro, nem um transeunte, nem um gato, nem um cão. De vez em quando, nuvem de poeira. Por volta das 6 horas, sombras furtivas começarão a esgueirar-se ao longo das altas casas abandonadas. Sombras dobradas ou torcidas, lutando contra o vento selvagem. Dentro em pouco, tudo voltará a ser deserto de pedra e poeira. O inverno vale a pena ser vivido. É de um rigor incomparável. Não nos poupa nada, atormenta-nos, julga-nos. Obriga a nos olharmos bem de frente, no espelho, reduzidos à nossa expressão mais simples, ou seja, a nós mesmos, isto é, à angústia. Os homens que acotovelam as mesas de mármore fingem ver a TV. Silhuetas torcidas se agitam. A locutora sorri para os anjos e anuncia a chuva e o tempo bom. Poderia anunciar o fim do mundo, que os homens não se mexeriam, continuariam assim, como estátuas. São velhos, são nodosos, são oliveiras destacadas da terra. São indiferentes e impassíveis. Invejo-os. E o autor, bem entendido, na justa medida da minha loucura, se estou louco, da minha angústia, se estou angustiado, do meu delírio, se estou delirante. De todas as maneiras, da minha solidão. Estou só. Assim o quis. Detesto as multidões. -- E por que precisa de solidão? -- Na vida de cada um, chegam um momento e uma idade... Tenho quarenta e seis anos... Em que é necessário determinar a rota, fazer o balanço das nossas forças e das nossas fraquezas, das nossas derrotas e das nossas conquistas. Esse momento chegou, para mim. -- Mesmo no plano sentimental? -- Mesmo no plano sentimental. Quanto à alusão, não pense que ela me perturba. -- Pensa escrever outro livro? -- Sem dúvida. -- Um romance? -- Um romance autobiográfico. -- Detalhes? -- Só posso dizer que se intitulará “Os Pessegueiros Florescem no Outono.” -- Onde pensa refugiar-se? -- Não sei ainda, provavelmente em Paris, Barcelona, Veneza, Berlim, Viena ou Nova Iorque... ... A imprensa retira-se. (Janeiro de 2016) Neuroforia, isso não vem no dicionário. Durante três noites, Zoé sumiu. Uma noite voltou tranqüila, um pouco cansada. -- Acabou a neuroforia. Mais tarde, bem mais tarde, ela tentou explicar-me. Vou, por meu lado, tentar traduzir Zöé. Digamos que a neuroforia é uma força incoercível, louca, que nasce em nós, cresce e explode. Então, nada nos pode impedir de ir até ao limite de tudo. E mais além, se for possível. Então, a gente luta, bebe e come, faz o amor e toma drogas, fala e fala ainda. Isso pode durar de dez a cinqüenta horas, até que o doente fique exausto. É a fuga para diante, à frente da angústia. É a chance da última chance. É engolir o tempo e engolir o espaço. E negá-lo. Milhões de homens morrem intatos. Ou seja, pouquíssimos diferentes do que eram ao nascer. Sem terem conhecimento realmente de nada, nem experimentado, nem aprendido. Morrem intatos, sem jamais terem gasto o capital psíquico, a força real, o dinamismo que é dado a cada indivíduo. Um monte de carvão não consumido, que se deixa apodrecer sobre o chão da mina. Esses consumiram a vida. O amor não existe, eu juro. É hora de dizê-lo, de proclamá-lo por cima dos telhados, de anunciá-lo à trombeta. Ou, melhor, minha cara Zöé, o amor não existe senão para alguns. Eis o segredo. E você, com as suas recordações de pesadelo, não faz parte daqueles a quem foi dado o amor. Você, como milhares, como milhões de outros. Como todas as multidões imensas do planeta, que obedecem a reflexos condicionados. Todos alienados pela religião, pela mídia, pela TV, pelo cinema, pela literatura, a boa e a má, que miam a cada minuto, a cada segundo, o amor, sempre o amor. Não há amor, não há milagre para todos esses, desprovidos, condicionados, que vivem redondamente equivocados. O amor, o verdadeiro, é sempre trágico, exaltador. É uma sociedade secreta, cuja iniciação é cruel e complexa. É o que viviam Tristão e Isolda, com a espada no centro do leito. É o que perseguia Dom Quixote nas planícies da Mancha, essa caça à sombra, essa busca exaustiva e raramente triunfante. Donde a necessidade que eu tenho da literatura. É mais fácil e menos perigoso. Estamos tão doentes! A maioria não sabe, mas eu sei. -- Doente de quê, Sr. Mário? -- Não da alma, não da consciência, não do cérebro. Não, é demasiado vago. Doente de ternura, de generosidade, solidariedade e do dom de si mesmo. Doente de Deus, talvez, doente de amor sempre. Doente do corpo de todas as mulheres do mundo. Doente do tempo e doente do espaço na busca infrutífera de transcendência, consciência cósmica e uni/versos paralelos; doente das palavras, quando escrevo e não publico, das carícias, quando amo, dos lençóis, quando durmo. Doente da morte, cara doutora. -- E qual o seu remédio, caro escritor? Não há remédio, a não ser, sempre e sem parar, a contestação e o protesto. Tem de haver orvalhos e vaga-lumes no jardim que velam todas as noites enquanto os outros dormem e têm pesadelos. Tem de haver quem berre, ao vento, as verdades essenciais, quem despedace e quem destrua, quem ponha tudo em causa, minha bela. E não importa que meio, recomendável ou não. O importante é que deixe marcas. -- O senhor é um anarquista, Sr. Mário Lúcio. -- E a senhorita é uma imbecil! A caverna tem isto de bom, é confortável e ao abrigo dos outros. Cada qual pode ficar indefinidamente na sua caverna. É, aliás, o que todo mundo faz ou se esforça por fazer. Só eu resolvi sair da minha caverna, e há muito tempo. Ou, mais exatamente, errar de caverna em caverna, sabendo o que elas são, apreciando provisoriamente o seu conforto, mas sem nunca dormir nelas. Sei agora que as sombras não passam de sombras. Sei que lá fora é dia, mas que no interior das cavernas ainda posso representar e me contar histórias. Não sou mais um idiota. Tudo isto para lhe dizer que não existe pessoa dupla de você ou de quem quer seja. Que somos sós e únicos, e que é preciso acomodar-se a esse estado. Conseqüentemente, tenho ao mesmo tempo a tristeza e o prazer de lhe dizer, de lhe afirmar, de lhe jurar que o amor não existe. Fricciono-me. Sinto-me realmente novo, mudei de pele a neuroforia foi afogada. Volto para o quarto, visto-me. Trouxeram a bandeja com o chá, o doce, as torradas e a manteiga. Sirvo-me, bebo, como, o mundo me pertence. Estou pronto, gentleman bem barbeado e cheirando a lavanda. Zöé guarda a roupa suja na maleta. Termino o meu chá. Zöé pega a maleta, dirige-se para a saída, eu a sigo. Segui-la-ei até ao fim do mundo, e seguirei apenas a ela. Ela acende um cigarro, põe o carro em marcha. – ligue o aquecimento. O navio deixa o porto. É necessário morrer, quando os rostos já não nos fazem sinais, quando as vozes se tornam incompreensíveis. Então, é uma questão de dignidade. Não se morre quando um ser nos abandonou. Morre-se quando nós mesmos nos abandonamos. Estou aqui, não estou aqui. Não sei nada. Em suma, quero anular-me, mas com todas as garantias possíveis. Quero ter a certeza de que estou desertado. Sôo oco, sou um fantasma. E grito para dentro, como um filósofo-de-bolso: a vida é absurda, eu sou absurdo. Ando às voltas dentro das armadilhas da casa de vidro. Zöé, silenciosa, vigia-me. Assiste impassível à minha agonia, como boa conhecedora. Dêem-me garantias e eu me anulo, fico fora de combate. Silêncio. As vozes cochichadoras, destiladora s de bons conselhos, estão mudas. Cabe a mim arranjar-me, só, sempre só. E recomeçar uma vez mais a análise das razões, a procura das causas. Não se trata dos meus livros, mas da minha alma. Não me interessa a literatura, não me interessam os meus livros. “Todos os meus livros por um Reino!” O que eu procuro, é um reino. O que eu preciso é fazer um inventário, uma grande faxina. Jogar fora o que estiver demasiado usado, limpar e só guardar o essencial. Voltar ao essencial, ao absoluto, ao definitivo. Gostaria de ter a meu lado um ser com quem pudesse falar, a quem pudesse comunicar tudo o que vivo, tudo o que experimento. Zöé não basta. Com ela, são sempre monólogos paralelos. E onde está ela? Onde está aquela que viverá comigo todas as aventuras do corpo e do coração? E também do espírito. Aquela que comigo construirá a alta torre da solidão partilhada? Finalmente... Anna Sophia! O mesmo sentimento cada vez que a vejo e a mesma impotência para expressar essa espécie de paralisia que atinge. Poderia amá-la até à eternidade, amá-la até morrer, com todas as pisaduras e todas as feridas do amor. Com todas as ternuras do mundo e todos os impulsos que só esperam para brotar, verdadeiros e fortes. A estrada. Os faróis, os plátanos. Uma luz baça envolve a noite. Talvez vá chover. O silêncio repousado. O da satisfação e da paz. As palavras não significam mais nada. Pulverizaram-se. Recordar. A avareza da Memória. Recordar-se dos momentos, arquivá-los, guardá-los na cabeça... Explodi neste amor. Fiquei reduzido a pó. Mas para ressuscitar, para ressuscitar, enfim. E que tudo agora seja claro e legível. Quero ler-me em livro aberto... Os plátanos, a estrada, os faróis. A neblina branca, dissimulada... Era para melhor renascer. Ressuscitei... Uma transformação teve lugar quando eu já não esperava nada. Quando eu já pedia demissão... O amor que temos a fazer, a inventar. O império que precisamos edificar. Depressa, muito depressa. Precisamos lutar contra o tempo, agarrá-lo em velocidade. Ele é o inimigo. Um amor, isso existe? Existe, mas em estado bruto. É uma pedra, um objeto. E a gente não sabe o que fazer com essa pedra, embora tudo se possa inventar. É preciso dar um sentido ao amor, uma direção. Animá-lo, iluminá-lo. De outra forma, ele fenece, asfixiado pela sua própria inércia... Crer na virtude das palavras por si sós. Mas as palavras não têm virtude, a não ser a que se lhes quer dar. E que se lhes dá por impotência, por ociosidade, por covardia. Também é fácil fazer um filho. Supremo álibi para lutar contra o medo e a solidão. E a morte, também. Para existir por procuração. Para enganar. Um menino, isso permite, por instante, julgar-se imortal. Não mais fingir viver com os outros que fingem viver. Admitir que os meus antigos amores eram falhos, que não passavam de atos de egoísmo e de orgulho. Admitir que aquilo que a que eu chamava de “minha filosofia” nada mais era do que paródia de um pensar rigoroso. Admitir que o que eu escrevi nada mais foi do que o reflexo do carnaval em que vivi. A descrição hábil dessa partida de esconde-esconde de que eu brinco comigo mesmo há quarenta e sete anos, para não me confrontar com a “minha realidade”. Negar-me. Aprender a humildade. Um par de faróis me ilumina e me fustiga. O carro de Anna Sophia acaba de estacionar ao lado do meu. Fico imóvel, paralisado. Ela me vê. E eu, alucinado, vejo-a descer, vir para mim, inclinar-se para mim, beijar-me. E eu soluço. – Anna Sophia, Anna Sophia, meu amor... Os anjos da escuridão... Eles quase me aprisionaram em suas asas insanas e cruéis. (*) EUGENIO SANTANA é jornalista, ensaísta e escritor. Redator-chefe da Revista Cenário Goiano, Revisor de textos do jornal Diário da Manhã, Editor-geral do Blog Guardião da Palavra e Superintendente de Imprensa no Rio de Janeiro. Autor de 11 livros publicados. Consultor de mídias sociais em Curitiba, PR. (41) 9.9667-8484 WhatsApp