domingo, 5 de abril de 2020

ESCASSOS ESCRITORES LATINO-AMERICANOS QUE CONQUISTARAM O PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA (*)

Começando a ser entregue em 1901, só em 1945 o Prêmio Nobel de Literatura veio a premiar alguém da América Latina, e foi - curiosamente - uma poetisa: Gabriela Mistral. O fato é curioso, porque comunga três raridades na história do prêmio: mulher (onde os homens são maioria), poesia (onde a prosa é maioria) e América Latina (onde a Europa reina). Gabriela Mistral, pseudônimo de Lucila Maria del Perpetuo Socorro, assim sendo, é alguém a ser lembrada: poetisa chilena de um lirismo surpreendente. Diplomata e feminista, suas obras são carregadas de uma poesia ora forte e violenta, ora leve e romântica. Foi professora do "Liceu de Moças" no Chile e sofreu muito preconceito por ser mulher na sua vida de pedagoga e escritora. São versos dela: "Dá-me a mão e dançaremos,/ dá-me a mão e me amarás./ Como uma só flor seremos, como uma flor, e nada mais...// O mesmo verso cantaremos,/ ao mesmo passo dançarás./ Como uma espiga ondularemos,/ como uma espiga, e nada mais...// Chamas-te Rosa e eu Esperança,/ mas teu nome esquecerás,/porque seremos uma dança/ na colina e nada mais..." "Dame la mano y danzaremos" de Gabriela Mistral "Como sou rainha e fui mendiga, agora/ vivo em puro temor de que me deixes,/ e te pergunto, pálida, a cada hora:/ 'Estás comigo ainda? Ai, não te afastes!'// Quisera eu fazer as marchas sorrindo/ e confiando agora que vieste;/ mas até em dormir estou temendo/ e pergunto entre sonhos: 'não te foste?'" "Desvelada" de Gabriela Mistral Gabriela Mistral é, até hoje, a última mulher latinoamericana a receber o Nobel de Literatura. Em 1967, Miguel Ángel Asturias, poeta e diplomata da Guatemala, recebe o prêmio Nobel por sua literatura enraizada e, em especial, por seu livro Hombres de maíz. Assim começa seu romance mais conhecido: "O Gaspar Ilón deixa que à terra de Ilón lhe roubem os sonhos dos olhos. O Gaspar Ilón deixa que à terra de Ilón lhe joguem as pálpebras com machado... O Gaspar Ilón deixa que à terra de Ilón lhe chamusquem as manchas dos cílios com as chamas que deixam a lua com cor de formigas velhas." Início de Hombres de maíz de Miguel Astúrias. Em 1971, outro poeta fruto de terras chilenas é coroado com as rosas do Nobel: Pablo Neruda (sobre ele já escrevi aqui e aqui) Alguém que acompanhe a coluna há algum tempo já deve ter percebido minha fixação por Neruda, aprendi espanhol por causa dele e sua poesia até hoje é invencível. O autor de Crepusculario, Veinte poemas de amor y una canción desesperada, Residencia en la tierra, Odas elementales y Libro de las preguntas passa impoluto pelos tempos. Neruda, pseudônimo de Ricardo Neftalí Reyes, foi poeta e cônsul. São versos dele: "(Amo o amor dos marinheiros/ que beijam e se vão.// Deixam uma promessa./ Não voltam nunca mais.// Em cada porto uma mulher espera:/ os marinheiros beijam e se vão.// Uma noite se encostam na morte/ no leito do mar.// (4) // Amo o amor que se reparte/ em beijos, leito e pão.// Amor que pode ser eterno/ e pode ser fugaz.// Amor que quer libertar-se / para voltar a amar.// Amor divinizado que se achega./Amor divinizado que se vai.)" "Farewell" de Pablo Neruda "Melisanda: Em teus braços, enredam-se as estrelas mais altas. Tenho medo. Perdoa-me por não ter chegado antes. Pelleas: Um sorriso teu apaga todo um passado: guardem teus lábios doces o que já está distante. Melisanda: Em um beijo, saberás tudo o que calei." "Pelleas y Melisanda" de Pablo Neruda Em 1982, foi a vez do Gabo. O colombiano fantástico Gabriel García Márquez, autor de romances intraspassáveis como El amor en los tiempos del cólera e Cien años de soledad, recebia, então, a honra de figurar no rol de agraciados com o Prêmio Nobel, por "seus romances e contos, em que o fantástico e o real se combinam num mundo densamente composto pela imaginação, refletindo a vida e os conflitos de um continente", como afirmou a Academia Sueca ao anunciá-lo. "Florentino Ariza havia pensado em levar-lhe as setenta folhas que então já poderia declamar de memória de tanto que as lera, mas se decidiu por um meia página sóbria e explícita, em que só prometia o essencial: sua fidelidade a toda prova e seu amor para sempre." Gabriel Garcia Márquez em "O amor nos tempos do cólera" "Havia achado, sempre, que morrer de amor não era outra coisa além de uma licença poética. Naquela tarde, de regresso para casa outra vez, sem o gato e sem ela, comprovei que não apenas era possível, mas que eu mesmo, velho e sem ninguém, estava morrendo de amor. E também percebi que era válida a verdade contrária: não trocaria por nada neste mundo as delícias do meu desassossego. Passei uma semana inteira sem tirar o macacão de mecânico nem de dia nem de noite, sem tomar banho, sem fazer a barba, sem escovar os dentes, porque o amor me mostrou tarde demais que a gente se arruma para alguém, se veste e se perfuma para alguém, e eu nunca tinha tido para quem" Gabriel García Márquez em "Memórias de minhas putas tristes" Octavio Paz, poeta, ensaísta, teórico e diplomata mexicano, recebeu em 1990 a honraria. Autor dos clássicos El arco y la lira e El laberinto de la soledad, o poeta destacou-se no cenário latino-americano de modo surpreendente. São versos do autor: "Minhas mãos,/ abrem as cortinas de teu ser/ te vestem com outra desnudez/ descobrem os corpos de teu corpo/Minhas mãos/ inventam outro corpo ao teu corpo." ** "Entro em ti,/ verdade das trevas./ Quero as evidencias do obscuro,/ beber o vinho negro:/ toma meus olhos e arrebenta-os." Octavio Paz em "Através" "Palavras? Sim, de ar,/ e no ar perdidas./ Deixa que eu me perca entre palavras,/ deixa-me ser o ar em alguns lábios,/ um sopro vagabundo sem contornos/ que o ar desvanece.// Também a luz em si mesma se perde." Octavio Paz em "Destino de poeta" O último nome da América Latina a entrar na lista foi o romancista, dramaturgo, político e ensaísta peruano Mario Vargas Llosa. Sou um fã de Vargas Llosa em muitos aspectos e por muitos motivos, sua literatura e sua postura perante a arte não ícones. Em 2010, a Academia Sueca anunciava a sua premiação por "sua cartografia de estruturas de poder", o que realmente se destaca na obra de Llosa, composta por obras como La ciudad y los perros e La fiesta del Chivo, sempre impregnadas de política. "Agarrei-o pela camisa e disse: ‘Se você chegar perto da Teresa outra vez, a surra vai ser pior.’ [...] Ele me disse: ‘Você está apaixonado até a alma. [...] O amor é a pior coisa que existe. Você anda feito um idiota e deixa de cuidar da vida. As coisas mudam de significado e você é capaz de fazer as maiores loucuras e de se ferrar sempre num segundo.'" Mario Vargas Llosa em "A cidade e os cachorros" "Por volta do meio-dia, muitos andamarquinos já se aventuravam a ir até o centro da praça para manifestar suas queixas, fazer suas recriminações e apontar os maus vizinhos, os maus amigos, os maus parentes. [...] Todos foram condenados por um bosque de mãos. [...] Foram executados de joelhos, apoiando as cabeças num broquel de poço d’água." Mario Vargas Llosa em "Lituma nos Andes" Porque por seis vezes o Nobel de Literatura passou pela América Latina, coroou alguns e a outros esqueceu. A lista de esquecidos é grande: Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Carlos Fuentes, e outros e outros e outros. Porque por seis vezes o Nobel de Literatura passou pela América Latina, coroou alguns e a outros esqueceu. Tomara que ele volte. (*) EUGENIO SANTANA é Escritor, Jornalista, Gestor editorial, Ensaísta, Redator publicitário, Blogueiro, Biógrafo, Ornitólogo. Onze livros publicados. Autor, entre outros, de "Ventos Fortes, Raízes Profundas", autoajuda, Madras editora. (41) 9.9667-8484 WhatsApp