quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

ANJOS E CÃES NÃO SÃO MUITO DIFERENTES (*)

Charles Bukowski estava mais ou menos com trinta anos quando sofreu uma crise hemorrágica e foi internado praticamente entre a vida e a morte. Até aquele momento, não passava de um contista de poucas publicações em revistas baratas, morava em quartos de hotéis sujos e vivia de pequenos trabalhos manuais. O médico lhe dissera, após a regeneração improvável, que "mais nenhuma gota de álcool, se não você morrerá". A recomendação médica, é claro, foi negligenciada, mas quiseram os deuses lhe dar outra oportunidade de viver pelo menos mais quatro décadas. Ao retornar para casa depois do internamento, Bukowski sentou-se em frente à máquina e recomeçou a escrever como um louco - só que agora, poemas, muitos e muitos poemas. Em suas próprias palavras, depois de ter outra chance de viver, tudo que ele queria era "gritar um pouco", o que classificou como um ato egoísta, mas também como algo inevitável. Desde então, Bukowski começou a tecer a sua reputação como escritor. Nas publicações underground de Los Angeles, seu nome era cultuado. Ele era o rei das "pequenas publicações". Durante a década de setenta e principalmente nos anos oitenta, Bukowski encontrou a fama que sempre almejara. Jean-Paul Sartre lhe chamara de "o maior poeta da América". É certo que Bukowski escrevia poemas desde os 15 anos, e que os seus trabalhos anteriores e posteriores ao internamento não ficaram muito diferentes em relação ao trato com a linguagem ou a algum outro aspecto formal do poema. O que é flagrante e, creio, o que determinou o reconhecimento e a qualidade da poesia de Bukowski após a sua quase morte foi a clareza e a sensibilidade adquiridas e traduzidas por ele diante de um acontecimento dessa natureza. Ao lidar com o seu tema preferido (ele mesmo), soube fazê-lo com a maior honestidade e com maior precisão que antes de ter vivido uma situação limite. Por "ele mesmo" pode-se entender, além da questão biográfica, é claro, um modo de estar no mundo e de vivenciá-lo que, de certa forma, dialogou com muitos e muitos anjos caídos (uma expressão sua) nos Estados Unidos e fora dele. Ao abordar personagens e acontecimentos fora da engrenagem do chamado "sonho americano" (que nada mais é do que a vida comportada da classe média próspera e alienada) a poesia de Bukowski radiografou e apresentou ao mundo o outro lado da vida estadunidense. "Anjos e cães não são / muito diferentes". Este é um verso que abre uma de suas obras-primas, chamada "Uma janela de vidros espelhados". Este é um verso que sintetiza bem a percepção de Bukowski sobre os seres humanos e, no limite, sobre a vida e a poesia. Para Bukowski, o que se considera grande e transcendental pode ser ao mesmo tempo algo corriqueiro, constantemente rechaçado e desprezado pela maioria das pessoas. Fazer um poema sobre os vagabundos que se sentam às duas e meia da tarde numa cafeteria de estimação para ficarem ali tomando café e esperando que o tempo passe, saboreando o escorrer melancólico do dia junto a uma xícara de café, fazer um poema com este tema significa dizer: olha, a vida pode constantemente ser sem graça e desprezível, mas se você tiver um pingo de vontade, um punhado de compaixão pela sua própria existência e a dos outros, você poderá transformar o mais reles acontecimento cotidiano em poesia. Viverá na poesia. Sentirá a poesia enquanto vive, seja em seus melhores momentos, seja em seus piores momentos, mas haverá sempre uma clareza de sentimentos que só a poesia pode proporcionar. Só deste modo conseguirá escrever algo tão simples, honesto e sensível como estes dois versos: you can't beat death but you can beat death in life, sometimes. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, agente literário, publicitário, gestor editorial, analista de marketing digital e palestrante. Dez livros publicados. Membro benemérito "ad honorem" do Centro Cultural, Literário e Artístico de PORTUGAL. Contatos: autoreugeniosantana9@gmail.com e (41) 99547-0100 WhatsApp