terça-feira, 14 de março de 2017

FRAGMENTOS DA MEMÓRIA (*)

Fazendas Quilombo, Cedro e Cachoeira, Chapada, Bonito, Bonsucesso, Mundo Novo, Água Fria, Forquilha, Lamarão, Vera Cruz, Santa Maria Lagoa Torta e “Aldeia de Cima” (onde nasci)... Cheiro forte de araticum, gabiroba, cagaita, jatobá, baru, cajuzinho, mangaba, marmelada, jambo, jenipapo e outras frutas silvestres do cerrado que perfumava e invadia meu chão de infância, os anos verdes, meu querido e inolvidável pai. Lembro-me o tempo de menino puro e inocente que agasalhavas nos seus braços longos, fortes e musculosos... A cantilena modorrenta do carro-de-boi, meu pai, subindo a serra verde-azulada; sulcando fundo a terra vermelha dos campos de sonhos da amada e inesquecível Minas Gerais, região noroeste. Imenso município de Paracatu “do Príncipe” ou “Atenas Mineira”. Gritavas a plenos pulmões: “Diamante, Gigante, ôôôaaahhh!... Dois bois estimados, laboriosos e ao mesmo tempo dóceis. Nós – os restantes – aprendizes de carreiros, filhos das rochas, rios e ventos carreávamos com entusiasmo e indisfarçável alegria. Lembro-me do teu ritual de organizar as cangas e colocar o azeite, um óleo ônix que tão bem sabias preparar; lubrificavas os eixos das rodas e o carro-de-boi rangia, cortando o Sertão preguiçosamente e cantava – cantiga de cigarras – na vastidão dos nossos campos Gerais, percorridos e pesquisados, também, pelo saudoso e memorável homem de letras, o nosso escritor mineiro Guimarães Rosa, acompanhado do seu fiel escudeiro o vaqueiro Manuelzão. O velho carro-de-boi avançava lentamente nas estradas de chão batido formando sulcos profundos – rastros do tempo – na terra molhada... Menino pequeno e franzino seguia-te “chamando guia, à frente”, com a vara de ferrão. Não gostava, pai, das investidas surpreendentes dos marimbondos traiçoeiros que atacavam, às vezes, quando estávamos desprevenidos, pois precisávamos estar atentos à caravana. Adorava quando cavalgavas aquele seu cavalo pampa amansado pelo seu primo Santos Perez, na garupa eu seguia contente: o menino mais feliz do mundo! Colhias com gestos de carinho o fruto maduro, doce e agradável da marmelada-do-campo, uma das minhas frutas prediletas. E aquela aventura periódica e imperdível, pai, de subir a íngreme serra. Após a perigosa escalada enfrentávamos com indômita bravura e coragem o “Rio Aldeia”, invariavelmente transbordando suas águas turvas. Fazíamos a travessia por meio de uma frágil pinguela ou nadando, agarrados à montaria. Após a extenuante vitória rumávamos para o “Quilombo”: a fazenda-origem de teus ancestrais, meu querido e amado velho “Nequinho!”. Ali estava, papai, teu filho-do-meio – Toninho: tímido, calado, introspectivo; mas, cúmplice, parceiro obediente; tão magrinho... Seguindo-te por léguas e léguas nas imensas distâncias das Minas Gerais. Nas Asas da saudade e da memória, recordo, pai, a barraca de lona improvisada onde acampamos por volta de 1963. Uma vida cigana tão autêntica, vivência agradável respirando Natureza por todos os lados. Uma árvore bonita e frondosa “fruta-de-óleo”, foi parte do nosso teto; privilégio para a contemplação do incrível brilho das Estrelas. Hernandes e eu (o mano-ébano, “irmão de coração”), ajudávamos no feitio da cerca de arame farpado, serviço contratado pelo vovô Zé Sant’Anna, dono da extensa e promissora fazenda “Forquilha”. Velhos tempos, pai, de banho de rio e muita pescaria. Parece que foi ontem... “Brejo Alegre”... que alegria, pai, compartilhar a tua companhia e da amada mãe Adília... Hernandes meu leal guardião; águas de cacimba, caçadas intermináveis aos tatus, seriemas, saracuras, pombas-do-bando, jaós... Incontáveis aves e pássaros povoaram minha infância, querido velho, graças a ti. “Ilha do pau pombo”... Inventamos esse nome, lembras-te? Lenha de murici tão apreciada por minha mãe. Fogueiras sob o luar do outono, para espantar possíveis animais peçonhentos. O mel de abelha jataí, encontráveis normalmente no pau-terra. Os inumeráveis ferimentos nos dedos em conseqüência do constante labor com os pregos-triângulo na cadência intermitente do martelo nas estacas de “vinhático”, tua madeira preferida para cercas de arame. E como entendia de madeira de lei, meu velho? Admirável o teu conhecimento. Invejável a tua experiência e capacidade. Gratidão é o Sol do Verbo ou simplesmente a Palavra alada? Não importa os erros gramaticais, o palavreado simplório, por conta de nossas origens rurais, cometidos ao sabor desta inominável emoção. Nestas circunstâncias o coração do “poetalado” de milenares vidas, sangra visceralmente. Literalmente. Por favor, Anjo Lecabel, forneça a senha para o carrossel mágico de lembranças... Uma infância lúdica e prazerosa. Sentia a natureza penetrar os olhos, a mente, alma, braços, pernas, coração. Gratidão, meu velho Nequinho, por teres me propiciado a melhor infância do planetazul. Após a maravilhosa temporada nas fazendas dos queridos parentes, integrantes da nossa Árvore da Vida, construístes, a duras penas, a casa que nos abrigou, na cidade, no alto do bairro Bela Vista, palco e cenário de tantas reminiscências... O mano Eustáquio e minhas irmãs Lúcia e Graça. Patrícia, a caçula, veio por último já em chão goiano, Anápolis. Raras fotografias no alpendre... Os biscoitos fritos preparados pela mãe Adília. A marmita que eu levava diariamente para o seu almoço na máquina de beneficiar arroz do Sr. Juquita Vargas. Os banhos na “praia do matinho”... As chegadas bizarras, esfuziantes, hilárias e fugazes dos amáveis Ciganos, que acampavam ao longo da “praia”. Nosso fetichismo e curiosidade. Fui menino “voyeur” das ciganinhas, é claro. Os jogos de futebol, meu time, meu chute certeiro com a “canhotinha de ouro”. As bolas de meia; bolas de gude, bolas de lobeira... Os amigos Beto, Samuel, Donizete, Plínio: infernizávamos meu Deus, a chácara do “seu Jerônimo”... Era uma correria danada. Divertíamos muito! A “comédia”, as “galinhas noturnas”, “horas dançantes” ao sabor da jovem guarda. Circos e parques. A novidade recém-inaugurada Rádio “Juriti” e o vozeirão inconfundível do primeiro locutor, o Eurico Santos. E pelas ondas sonoras vindas de São Paulo, o romântico programa “Barros de Alencar”. Velhos tempos dos anos 1960: amor, leveza, alegria, descontração pura e contagiante. A Primeira Comunhão na Igreja Matriz Catedral de Santo Antonio. Naquele tempo, vestíamos de “Anjo”, indumentária alada, muito interessante... Maria Lúcia ficou tão linda! Eustáquio arrasou, com o terninho com gravata borboleta e a vela na mão. Graça, ainda muito pequena, me acompanhava nas “caçadas” aos passarinhos: visgo, arapuca, alçapão, estilingue e espingarda de pressão. Minha infância povoada de pássaros e aves marcou-me a vida para sempre. O amplo quintal, o vasto pomar: abacaxis, pêssegos, goiabas, mangas, abacates, jabuticabas, laranjas, mamão, amoras. A horta de mãe Adília: eu gostava tanto de ajudá-la a adubar, regar, cercar... E ousava, também, plantar com a orientação dela, claro. Velhas lembranças mescladas com o teu amor perene, insubstituível. Mangabas sazonadas no início do Verão. “Morro do Ouro”: fico amarelo e morro de saudades. A “Gruta Cachoeira de Vênus”, na praia dos Macacos. Encima árvores frutíferas incluindo saborosos jambos. As indefectíveis lavadeiras pobres do “Córrego Rico”. Alzira – minha Flor Azul: o primeiro esboço de amor adolescente... Largo do Jenipapeiro. O hangar dos pequenos monomotores onde eu escondia quando estava sorumbático e brincava, solitário, quem sabe ensaiando a vontade frustrada de ser, um dia, piloto de avião. O Largo do Sant’Anna e o velho casebre onde morou “dona Beja”, a famigerada cortesã. Não sofro, renasço. Revivo o que foi melhor em minha vida: a cidade natal, o palco da minha infância, a memorável presença e companhia do meu pai. Fiquei órfão e mais pobre sem as suas presenças essências querido, valoroso e amado pai Fabião e da senhora minha querida e valiosa mãe Adília. Jesus – O Sol do Verbo – O Mestre do Amor e da Sabedoria – O Cristo Cósmico é o companheiro inseparável: minha âncora, minha bússola. O consolo, o alento infinito. O Caminho, a Verdade e a Vida. Deus – Autor de nossas vidas nos enviou o Messias, o Príncipe da Paz para que nos perdoemos e encontremos a harmonia, em meio à surpresa, ao mistério e ao caos, existentes neste “Vale de Lágrimas”. Um dia, é certo, juntar-me-ei a vocês, nessas paragens cósmicas que desconhecemos. “Ele” pediu-me, carinhosamente, para não tentar desvelar os “Mistérios insondáveis”. Genuflexo e humilde reporto-me à Suprema Sabedoria Celestial. Imperecível saudade nestas asas da Memória, papai e mamãe. Os Anjos de Luz sussurram o verbo da coragem, fé, esperança, entusiasmo e amor incondicional. Eis o meu simples tributo. Esta tentativa de réquiem... Só Deus sabe porquê escrevo; escravo de uma Saudade inesgotável e que nunca terá fim. Beijos alados de seus filhos “Toninho”, Eustáquio, Maria Lúcia, Maria das Graças e Patrícia. Nossos laços são infinitos, intermináveis. É só olhar para as faces de Ingrid, Nuria Liz, Arthur Emmanuel, Enzo Gabriel, Camila, Bruna, Giovanna, Leonardo, Lílian, Glauciane, Janine, Marlon Régis, Gabriela... O amor que dedicaram a nós está impregnado em nossas almas e corações. Até a próxima. Até breve. Até sempre! Maktub. (*) EUGENIO SANTANA é jornalista, escritor, ensaísta, influenciador digital e blogueiro. Membro efetivo da ALNM – Academia de Letras do Noroeste de Minas, cadeira dois. Membro Acadêmico “Benemérito Ad Honorem” do Centro Cultural, Literário e Artístico de Portugal; Autor de nove livros publicados – Dedico à memória do meu pai Fabião Couto e de minha mãe Adília Santana.