terça-feira, 11 de maio de 2010
ENSAIO SOBRE A IDADE MÉDIA
O clima denso e tenso da Idade Média sempre me encantou: os contrastes sangrentos, a vida dos camponeses e dos senhores feudais, as catedrais góticas, as cruzadas, o clero, os templários, os rosacruzes, os cátaros, a sociedade occitânica, a corte, os mosteiros, a pestilência, os sacrifícios e sofrimentos, as trevas, a luz e o sangue derramados por quase mil anos.
Gosto de poemas e livros em que os costumes, as cenas criam-se com objetos, utensílios, palavras e expressões que poderiam estar ligadas à Idade Média, os filmes de época é um exemplo vivo. Pesquisei num livro de história: teares; moinhos; moringas; batedores; espadas; armaduras; hastes secas de linho; rebanhos e pastores; pátios de castelo; ervilhas, lentilhas e feijões; arado; “chuvas de abril”; falcões; panos de lã; couro de Córdova; pastéis de cotovia; alfaiates; boticários, ourives e monges.
Sinto um clima assim no poema “A Hóspede”:
Não precisa bater quando chegares.
Toma a chave de ferro que encontrares
sobre o pilar, ao lado da cancela,
e abre com ela
a porta baixa, antiga e silenciosa.
Entra. Aí tens a poltrona, o livro, a rosa,
o cântaro de barro e o pão de trigo.
O cão amigo
pousará nos teus joelhos a cabeça.
Deixa que a noite, vagarosa, desça.
Cheiram a relva e sol, na arca e nos quartos,
os linhos fartos,
e cheira a lar o azeite da candeia.
Dorme. Sonha. Desperta. Da colméia
nasce a manhã de mel contra a janela.
Fecha a cancela
e vai. Há sol nos frutos dos pomares.
Não olhes para trás quando tomares
o caminho sonâmbulo que desce.
Caminha – e esquece.
Mas o que mais me atrai na Idade Média é a visão mística da natureza humana e do seu lugar no cosmo, a vida terrena concebida como uma perigosa viagem da alma, o mundo anímico tão real quanto o mundo físico, a luta de cada dia para se preparar o destino da alma. Esse sentido maior de que nossa vida aqui é uma peregrinação num vale de lágrimas, onde somos assaltados por demônios tentadores, inimigos terríveis de enfrentar. Essa travessia só pode ser segura pela esperança e pelas orações e vigílias. Dessa forma chegaremos ao Paraíso descrito por Dante em sua “Divina Comédia”, o maior poema medieval: “Vi reunidos, ligadas pelo amor em um só volume, as folhas dispersas de todo universo” (Alighieri, 1993:331).
Neste ponto da perigosa travessia não posso deixar de associar ao “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães Rosa. O sertão é o mar, é o mundo, é a vida. Riobaldo, na sua longa narrativa de vaqueiro e jagunço é cada um de nós, atolado em dúvidas morais e metafísicas, lutando na própria consciência contra as forças de Deus e do Diabo. O estilo surpreendente de Guimarães Rosa misturando palavras inventadas, expressões da linguagem popular e erudita, neologismos, arcaísmos, procedimentos importados de outros idiomas recria a língua portuguesa, nesse “tom medieval” que relembra objetos e valores passados com fortes tintas poéticas como nestes trechos:
“A gente viemos do inferno – nós todos – compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstros-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance a graça de uma sustância alumiável, em que as trevas de véspera para o Terceiro Dia.”
“E aquela gente gritava, exigiam saúde expedita, rezavam alto, discutiam uns com outros, desesperavam de fé sem virtude – requeriam era sarar, não desejavam Céu nenhum.”
“Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo” (Rosa, 1983).
Das figuras medievais a que mais me toca é Joana D’Arc, heroína da resistência francesa, camponesa devota, “chefe de guerra” que intimou os ingleses a lhe entregarem as chaves de todas as cidades francesas em seu poder. Traída, foi queimada viva como herege e feiticeira.
Está claro que quando falo em “Idade Média” não estou me referindo exclusivamente a um período espacial, temporal, mas a um certo “clima”, valores, lembranças e imagens insondáveis do passado, retidos há séculos nas Asas da Memória, no inconsciente coletivo. Esse “clima”, ao contrário, faz com que não existam delimitações espaciais ou temporais, tudo poderia ter acontecido ontem ou estar acontecendo agora, em qualquer parte do universo. Nessa região de neblina mágica é que desejo entrar para revigorar o meu exercício literário.
(EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, poeta e ensaísta literário; copidesque e editor.)
segunda-feira, 10 de maio de 2010
PÁ/LAVRA
Uma palavra contém muitas. Há pá, instrumento de remover terra; PA, sigla do estado do Pará; e pã, divindade pastoril. Pala é leque e encerra ao menos quinze significados: peça de boné militar, parte do vestuário e do sapato. Lavra é área de mineração.
Palavra implica pal, abreviatura de “Pahse Alternate Line”, sistema de transmissão de imagens coloridas; e la, símbolo do lantânio; e va, de “volt-ampere”, e vã, o que nenhuma palavra é em si, a menos que equivocadamente verbalizada.
Palavra se faz com uma só vogal, a, primeira letra do alfabeto, e mais quatro consoantes. Há muitas palavras – a de Deus, a de honra, a do rei, que não volta atrás, e a que se dá para firmar um compromisso ou promessa.
Palavra contém ala, que tem a ver com fila ou parte de uma construção, e também ar, sem o qual não se pode respirar. E dela se obtém varal, lapa, ara, vala, para e par. E também sentidos, significados, conceitos. Palavra tem mais valor quando entremeada de silêncios. Derramada assim, de boca aberta, esvai-se. Comprida nas ânsias, é pura angústia, faz mal. De bom é o que não se fala entre uma palavra e outra. Então, sossego. Expectação. E vem a palavra, inaugurando o mundo. Plena de vida.
As palavras pesam. Talvez porque seja a mais autêntica invenção humana. Os papagaios não falam, apenas repetem. Não escapam de seus limites atávicos. O olho é a fonte da visão, como o ouvido, da audição. A língua facilita a deglutição, como a traquéia, a respiração. No entanto, a ânsia de expressar-se levou o ser humano a conjugar mente e boca, órgão da respiração e da deglutição, para proferir palavras.
“No princípio era o Verbo”, reza o prólogo do evangelho de João. Deus é Palavra e, em Jesus, ela se faz carne. Unir palavra e corpo é o profundo desafio a quem busca coerência na vida. Há quem prime pela abissal distância entre o que diz e o que faz. E há os que falam pelo que fazem.
A palavra fere, machuca, dói. Dita no calor aquecido por mágoas ou cólera, penetra como flecha envenenada. Ofusca a vista e instaura solidão. Perdura no sentimento dilacerado por um tempo que parece infinito, na mente atordoada pelo jugo que se impõe. Só o coração compassivo, o movimento anagógico e a meditação, que livram a mente de rancores, são capazes de imunizar-nos da palavra maldita.
A palavra salva. Uma expressão de carinho, alegria, acolhimento ou amor, é brisa suave a reativar nossas melhores energias. Somos convocados à reciprocidade. Essa força restauradora da palavra é tão maravilhosa que, por vezes, a tememos.
Orgulhosos, sonegamos afeto; avarentos, engolimos a expressão de ternura que traria luz; hipócritas, calamos o júbilo, como se deflagrar vida merecesse um alto preço que o outro, a nosso parco juízo, não é capaz de pagar. Assim, fazemos da palavra, que é gratuita, mercadoria pesada na balança dos sentimentos.
Vivemos cercados de palavras vãs, condenados à incivilização que teme o silêncio. Fala-se muito para se dizer bem pouco. Fazem moda músicas em que abundam palavras e carecem de melodias. Jornais, revistas, TV, outdoors, telefone, correio eletrônico – há demasiado palavrório. E sabemos todos: não se dá valor ao que se abusa.
O silêncio não é o contrário da palavra. É a matriz. Talhada pelo silêncio, mais significado ela possui. O tagarela cansa os ouvidos alheios porque seu matraquear de frases ecoa sem consistência. Já o sábio pronuncia a palavra como fonte de água viva. Não fala pela boca, e sim do mais profundo de si mesmo.
Guimarães Rosa inaugura “Grandes Sertões, Veredas” com uma palavra insólita: “Nonada.” Convite ao silêncio, à contemplação, à mente centrada no vazio, à alma despida de ilusões. Não nada. Não, nada.
Sabem os místicos que, sem dizer Não e almejar o Nada, é impossível ouvir, no segredo do coração, a palavra de Deus que, neles, se faz Sim e Tudo, expressão amorosa e ressonância criativa.
(Eugenio Santana – Copidesque.)
domingo, 2 de maio de 2010
REDE DE RELACIONAMENTOS VIRTUAIS: A IMPRESSÃO É DE QUE AMIGOS SÃO OBJETOS DESCARTÁVEIS
As redes de relacionamento são gêneros digitais criados para suprir necessidades exigidas pelas maneiras virtuais de agir. A vida torna-se impossível sem as novas tecnologias. É engraçado como esquecemos que antes vivíamos sem a comodidade proporcionada por elas. Essas novas tecnologias implicam uma necessidade antes impensada: relações virtuais tornam-se cada vez mais úteis numa realidade que exige uniões imediatas e rapidamente descartáveis. A sensação é de que amigos são objetos descartáveis, com prazo de validade. Construímos relações cada vez mais frágeis e efêmeras. A procura da felicidade e pelo bem-estar norteia a garantia individual de satisfação. O diálogo virtual adquire características semelhantes à interação face a face, real: funciona como uma atividade comunicativa diária, muitas vezes com o poder de estreitar o vínculo de intimidade, pela liberdade de tornar ausente o corpo. A linguagem é parecida com a oralidade, o que propicia liberdade de expressão, menor tensão e informalidade, como nas interações face a face.
A comodidade que se obtém com a internet facilita vínculos. Por serem fragmentados, voltados a objetivos específicos, os amigos virtuais se prestam a contatos direcionados. Podem ou não ser substituídos por outros, se uma necessidade não existe mais. Essa condição é reforçada por um cotidiano estressante, em que as pessoas estão escravizadas pelo relógio, pelo tempo. Soluções rápidas são desejadas e essas amizades virtuais são práticas. Se um amigo não está disponível quando eu necessito, outro estará. Os relacionamentos são formados pela conveniência mútua. Não há problema, hoje, em nomear como amigo um contato virtual, porque a amizade não possui um conceito único. Ela serve às demandas múltiplas e se constitui por essa variedade de interesses de ambas as partes, numa relação de troca. Os amigos virtuais são tão amigos – ou até mais – que os reais, porque não haver contato com o corpo do outro facilita a confissão de desagrados ou tabus. Amigos reais e virtuais convivem nesse território ambíguo de relações cada vez mais tênues. É fato que sair de um relacionamento virtual é mais fácil do que se desligar de um real. Higienizar relacionamentos por meio de um clique é mais simples.
A globalização aproximou as distâncias geográficas e ampliou o conceito de amizade. Amigo é provisório. Depende da utilidade que satisfaz um período de tempo. Os famosos fakes, identidades falsas e inventadas, não têm cara. Contudo, podem ser amigos, um número a mais na rede de relacionamentos. O número de amigos numa rede de relacionamentos é, para muitos, o termômetro da simpatia. Daí a justificativa para o jogo de adicionar amigos, ainda que estes desconhecidos. Um jogo de sensação de equilíbrio é desejado: se um amigo se afasta, ou se é descartado, outro é buscado, mesmo que seja para outra finalidade.
(Jornalista Eugenio Santana.)
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