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sexta-feira, 26 de março de 2021

AMOR. TEMPO. MORTE: É COMPLEXO DEIXAR UM ENIGMA DAQUILO QUE SOMOS (*)

Sentado em um velho tamborete de madeira, cercado por mosquitos ávidos pelo calor úmido que sai do bafo dos convalescentes, observo o universo ao meu redor. Não posso ser indiferente ao que vejo, ao mesmo tempo que não devo agir com intromissão. Não me cabe fazer perguntas indiscretas, investigar um passado cheio de reentrâncias capazes de trazer ao presente lembranças, saudades e principalmente dores. A sensação de cansaço que o tempo nos faz carregar quando ficamos velhos, nos dá a impressão que podemos tudo esconder, visto que esquecer é privilégio de alguns que se vêem atacados pela demência. Não é tão fácil deixar oculto aquilo que somos, principalmente quando pomos nossa alma nas paredes, em exibição. Quando se fala em velhice é difícil dissociar esta fase, da busca pela aproximação de um ser supremo que possa trazer alento às mais terríveis dores. Na cultura cristã ocidental a presença da imagem de Deus, seja ele representado por Jesus Cristo, Maria ou qualquer santo, é algo comum na vida cotidiana das pessoas. O catolicismo e o protestantismo se mostram de forma marcante, mesmo que o indivíduo sequer frequente igrejas ou argumente que não segue religião. Na pequena área de entrada de uma casa pobre, encontra-se em seu leito de dor, dona Joana. Nas paredes amarelas, mal rebocadas, vejo um deus que é três, representado por um homem mais velho, outro mais moço e uma criança, encimados por uma pomba que irradia luz. Na segunda parede que compõe o cubículo, adornadas em madeira, leio frases bíblicas contendo o nome de Deus escrito nela. Na terceira parede está Maria, representando a face feminina de Deus. Na quarta parede está Santo Onofre, um eremita que enquanto vivo, teve comportamento semelhante ao de um deus. O que pode estar por trás desta marcante presença que se mostra com diferentes faces? O que busca o homem quando exibe em suas paredes, o mais próximo possível de seus olhos, os símbolos de uma divindade? Busca a luz irradiada pela pomba; a sabedoria das palavras entalhadas na madeira; a proteção cúmplice da bondade da deusa mãe; o exemplo dado por alguém que buscou viver de uma maneira harmoniosa. Compositor de destinos, como diz o poeta, o tempo é senhor absoluto na vida de todos nós. Deitada em sua cama, com as pernas mirradas pelo desuso, dona Dolores aguarda sem ânsia ele passar. Ao seu lado, pendurado na parede, giram sem parar os ponteiros de um relógio antigo, com armação de madeira que resiste aos desgastes que seu dono, o tempo, o faz sofrer. A mulher já velha, cercada de silêncio, ouve o vento soprar nas árvores de uma tarde quente. Acompanhando o som do vento, o pulsar imutável do ponteiro dos segundos não deixa esquecer que o fim está cada vez mais próximo, como uma bomba relógio prestes a chegar em seu momento final. Quantas preces foram feitas aquele deus invisível (que se mostra opressor como tantos outros deuses) durante toda uma vida em busca de melhores dias! Podia ele trazer algo de bom se apenas esperássemos suas dádivas, ou teríamos que desafiar seus ponteiros e correr atrás de coisas melhores? Mas e se ao final, depois desta disputa, percebêssemos que ele nos venceu, tornando-nos seus escravos? Ele sempre vence no final, como um deus imbatível, nos tira o prazer dos pequenos e bons momentos de diversão que deixam de existir quando trocamos o convívio da família pelo dinheiro proporcionado pelo trabalho. Ele nos vence quando estampa em nossa cara as rugas e seus ares de cansaço, marcando como se marca um boi com brasa, para mostrar quem manda nesta difícil relação de poder. Parado na parede ele não para de correr. Corre contra cada um de nós, embora julgamos que corre junto conosco, na busca pela escrita de um destino. Pode ser Paris , um desejo que provavelmente jamais será alcançado. Pode ser uma foto antiga de um sábado se sol na praia com as crianças, que desejamos que aconteça novamente. Pode ser uma simples flor ou paisagem pintadas em óleo sobre tela, representando a beleza. Afinal, esta e o desejo andam de mãos dadas. Sentado em frente ao computador o autor escreve um texto. Acima de sua cabeça, sobre a parede branca, em quadros brancos repousam retratos em branco e preto contando histórias e mostrando rostos. Há o registro de um dia de uma infância vivida na década de oitenta, a ingenuidade, a pureza que só crianças possuem em seus semblantes assustados em poses para a foto. Há um mosaico contendo sete pessoas diferentes, cada uma ocupando um espaço de grande importância na vida de quem o montou. Há um registro de um dia de sol, em um fevereiro qualquer, quando se viu o mar pela primeira vez. Inesquecível lembrança que nem precisava ser emoldurada, dada a grandiosidade do ocorrido. Há o registro de um dia qualquer , sentando em frente a faculdade, onde viveu grandes momentos felizes de sua vida. Há o registro de seu próprio rosto, repetido diversas vezes, em outras duas fotos. O que elas querem dizer? Talvez representem o desejo de ser lembrado, jamais ser esquecido por si próprio. Assim como há também o desejo de voltar aos dias de infância com sua ingenuidade e memórias de um tempo de amor. Há o desejo de não esquecer a importância de ver o mar pela primeira vez. Há o desejo de olhar para as sete pessoas mais importantes de sua vida. E por fim, há o desejo de imaginar coisas e lugares que ainda podemos ter ou visitar, seja a beleza de uma flor em um quadro ou a Torre Eifel em Paris, que pode tornar-se possível. O que as paredes dizem sobre você? Talvez cada pessoa sequer perceba aquilo que busca, mas inconscientemente traz para o externo, e pendura em suas paredes, aquilo que mais almeja e cultiva. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, redator publicitário, agente literário, biógrafo, copidesque, revisor de texto e gestor em RH. Autor de 14 livros publicados: "Hóspede da Terra, Passageiro do Mundo", "Ventos Fortes, Raízes Profundas", Madras editora, entre outros. (41) 9.9909-8795 WhatsApp - email: es.escritor1199@gmail.com

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