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quarta-feira, 25 de março de 2020
A VISÃO FUTURISTA DE ALBERT CAMUS EM "A PESTE" (*)
Sessenta anos são transcorridos da morte prematura de Albert Camus. Ao escrever “A Peste”, ainda sob o impacto dos horrores da Segunda Guerra e da luta de libertação argelina, ele associa o absurdo, “que não se encontra no homem e nem no mundo, mas na coexistência entre ambos”, a uma surpreendente solidariedade que surge entre os seres humanos exclusivamente em momento de extremo estresse, como aquele vivenciado em situações de guerra e de peste, o que nos leva à atualidade da sociedade humana e da pandemia provocada pelo vírus Covid-19.
Numa pandemia como a de “A Peste”, para Camus todas as ideias gerais soam falsas e o mundo agredido e agressor não lhe parecia nem explicado ou explicável. “A Peste” é a vida em comunidade. Oran, uma cidade imaginária na costa argelina, é acometida por suposta impossibilidade: um surto de peste bubônica na segunda metade do século XX!
Antes da praga a cidade era modorrenta, o homem a tornara inóspita, previsível nos negócios e nos costumes. “Oran é feia… Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombos, sem árvores e sem jardins, onde não se encontra o rumor de asas e nem o sussurro de folhas. Apenas nos céus se lê a mudança das estações. A primavera só se anuncia pelos cestos de flores que trazem dos subúrbios: é uma primavera que se vende em mercados.”
E assegura que uma forma cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como nela se morre. “Na nossa cidade tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Nossos concidadãos trabalham muito apenas para enriquecerem… Os homens e as mulheres se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar de ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois… O mais original é a dificuldade que se tem de morrer. O doente fica muito só, dada a importância dos negócios e a qualidade dos prazeres. O que dirá o ato de morrer!” Logo, Oran é uma cidade absolutamente contemporânea, poderia ser qualquer cidade média de nosso Brasil.
Um primeiro rato morre com hemorragia, depois outros e outros, aos milhares; por fim os ratos moribundos desaparecem da cidade. Logo a seguir morre o primeiro ser humano. “A imprensa tão indiscreta no caso dos ratos, não mencionava nada (a respeito dos humanos). É que os ratos morrem na rua e os homens em casa. E os jornais só se ocupam das ruas.”
A descrição dos sintomas, das dores, das mortes que se acumulam é realizada minuciosamente e sem “piedade”.
Mas a administração pública insiste em esconder o flagelo até que não seja mais possível fazê-lo e a cidade inteira entra em quarentena, como se sitiada fosse e os isolamentos internos são instituídos. “Os flagelos, na verdade, são coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós…Os flagelos não estão à altura do homem: disse-se então que o flagelo é irreal, um sonho mau que irá passar.”
“Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções”.
Em “A Peste” o que mais interessa ao autor é mostrar como se comportam as pessoas quando começa a ruir tudo o que elas acreditavam ser sólido: os intercâmbios, as apostas ou bolsas de valores, as relações familiares, as comunicações, a saúde, num transformar dos habitantes em exilados do mundo. “Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos, as discussões? Julgavam-se livres e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos”.
E como se comportam os “oranianos”?
Inicialmente, quando os portões das cidades são fechados pelo isolamento do mundo, os laços de amor e amizade estreitam-se. Outra decorrência da peste é o exílio a que todos são confinados.
“A partir de então, reintegrávamo-nos, à nossa condição de prisioneiros e estávamos reduzidos ao nosso passado e ainda que alguém fosse tentado a viver no futuro, logo dele renunciava ao experimentar as feridas que a imaginação finalmente inflige aos que nela confiam… Assim, experimentavam o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e exilados, vivendo com uma memória que não servia para nada… Impacientes com o presente, inimigos do passado e privados do futuro”.
Isolamento que, gradualmente, também nivelará as pessoas, encurtando as distâncias sociais. A Peste não possui classe social quando se torna epidemia: “Porque a peste se tornava assim o dever de alguns, ela surgiu como realmente era, isto é, o problema de todos”.
No princípio, quando as pessoas julgavam a peste uma doença qualquer, a religião tinha muito prestígio, os sermões do Padre Paneloux eram extremamente concorridos e ele convocava todos a se arrependerem, a buscarem o perdão divino. “Mas quando viram que o caso era sério, lembraram-se do prazer e toda a angústia que se pinta durante o dia nos rostos, dissolve-se ao crepúsculo, numa espécie de excitação desvairada, numa liberdade desajeitada que inflama todo um povo”.
Camus presta muita atenção ao amor entre os amantes e ao valor da amizade: “A peste é preciso que se diga, tirara de todos os seres o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes… Ao mesmo tempo, a peste suprimia juízos de valor”.
Porém, quando “já não havia destinos individuais, mas uma história coletiva que era a peste, os sentimentos eram compartilhados por todos”. E é essa dor que devolve o valor e a força aos sentimentos. “Há sempre alguém mais prisioneiro que eu- essa era a frase que resumia a única esperança possível”.
Quando casas de empesteados foram fechadas ou incendiadas por motivos sanitários, começaram também os saques. “Foram incidentes que forçaram as autoridades a assimilar o estado de peste ao estado de sítio e aplicar as leis decorrentes”. Na peste e no isolamento tudo se sacrifica à eficácia de medidas que evitem a disseminação do mal.
Mas existe ainda a solidariedade humana.
O comportamento de determinado grupo de pessoas que se dedicará à luta contra a peste será o da mais estrita solidariedade. “Era uma luta resignada, mas persistente, ao mesmo tempo ilimitada e sem ilusões”, aquela travada pelos homens que providenciavam o isolamento sanitário dos doentes e a quarentena dos familiares, assim como um mínimo de atendimento às vítimas da peste.
A solidariedade humana é simbolizada por pessoas como o Dr. Rieux (que ao final se identifica como o narrador do episódio), um ateu que dá tudo de si no combate ao flagelo apenas por “estar bem consigo mesmo”; um “Rieux que julgava estar no caminho da verdade, lutando contra a criação tal como ela era”. Quando um popular lhe diz que ele não tinha coração, Rieux para e reflete que coração ele o tinha, pois lhe servia para suportar as vinte quatro horas por dia, nas quais via morrer homens que haviam sido feitos para viver. “O que eu odeio é a morte, é o mal. E quer queira, quer não, precisamos estar juntos para combatê-lo”.
Para o narrador o heroísmo tem sempre um papel secundário perante a necessidade de luta pela felicidade, e “o hábito do desespero é pior que o próprio desespero”. O que restava ao médico ao qual não era dado salvar vidas, pois a peste era mortal? Tão somente “descobrir (o flagelado), ver, descrever, registrar, depois condenar e ordenar o isolamento”.
A solidariedade também é encarnada no padre Paneloux. Ele, inicialmente, acreditava que a peste havia sido enviada por Deus para o castigo dos pecadores. Quando ocorre a morte, sob intenso sofrimento, do pequeno filho do juiz Othon, se dará o momento da ruptura do padre com o tradicionalismo da aceitação e da submissão. Paneloux diz a Rieux: “Isto é revoltante, mas talvez devamos amar o que não conseguimos compreender”. Retruca-lhe Rieux: “Eu vou recusar até a morte esta criação divina em que as crianças são torturadas”, numa reprodução do diálogo sobre a revolta, entre Aliosha e Ivan Karamazov.
Tarrou é um estrangeiro em Oran, um artista revoltado que atua lado a lado com Rieux criando brigadas sanitárias; ele deseja trabalhar pelo próximo como “um santo”, mas um santo sem Deus, sem a fé. “Já que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez convenha a Deus que não acreditemos nele e que lutemos com todas as forças contra a morte, sem erguer os olhos para os céus, onde ele se cala”.
Em determinado momento, Tarrou confessa a Rieux que a epidemia não lhe ensinava nada. “Sei de ciência certa que cada um traz dentro de si a peste, porque ninguém no mundo está isento dela”. “O que é natural é o micróbio. O resto, saúde, integridade, a pureza, é um efeito da vontade. É bem cansativo ser-se empestado, mas é ainda mais cansativo não se querer sê-lo… pois, é necessário, tanto quanto possível, permanecermos fora do flagelo”. “Eu me coloco no lado das vítimas em todas as ocasiões, apenas para limitar os prejuízos. Por meio das vítimas que auxilio, posso procurar a paz”.
“A Peste” é um livro humanista feito por quem se recusa a aceitar a injustiça do Universo. No silêncio eterno dos espaços infinitos ouvem-se somente os gritos das vítimas. Os homens devem permanecer uns ao lado dos outros quer por egoísmo, quer por santidade, mas tomando consciência dos sentimentos essenciais de amor, amizade, solidariedade.
Uma solidariedade que se traça como uma ponte entre moribundos e condenados. A mesma solidariedade que une os homens em perigo e que se desfaz como bruma em tempos de paz.
Chega um ponto em que a epidemia regride, a cidade começa a se recuperar, o isolamento é levantado e tudo se esquece.
Os ratos voltam a surgir vivos e espertos. “Pode-se dizer que, a partir do momento em que a mais ínfima esperança se tornou possível para a população, o reinado efetivo da peste havia terminado”. Entretanto, “todos os cidadãos estavam de acordo em pensar que as comodidades da vida passada não voltariam e que era mais fácil destruir que reconstruir”.
De qualquer forma, a libertação que se prenunciava tinha um semblante misto de sorriso e de lágrimas. Tarrou será a última vítima a morrer de peste.
“Tarrou perdera a partida como ele mesmo dizia, mas o que Rieux ganhara afinal? Lucrara apenas por ter conhecido a peste e lembrar-se dela, conhecer a ternura e lembrar-se dela também. Tudo o que o homem podia ganhar no jogo da peste e da vida era o conhecimento e a memória”.
Depois da peste, que metaforicamente teria sido a Gripe Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, os Campos de Concentração, os Gulags, os Estados de Sítio, quantos heróis da luta não voltaram para suas fraquezas? “Rieux queria fazer como todos à sua volta e crer que a peste poderia chegar e voltar a partir, sem que o coração dos homens mudasse com isso”.
“Não era cristão, talvez agnóstico, não era marxista, nada! Era Albert Camus filho do sol, da miséria, da morte”, dizia Sartre. Intelectual, sem dúvida, mas um intelectual que gostava de viver e observar o viver. Participou da Resistência Francesa ao nazismo até a libertação em 1944. Foi editor do jornal O Combate. Em 1951, rompe com Sartre, ataca o socialismo real e a própria perspectiva do comunismo. Em 1957, durante a guerra de libertação argelina onde ele que defendia uma saída negociada, recebe o Prêmio Nobel de Literatura. Morre em um acidente automobilístico em 1959, aos 46 anos de idade.
Ao receber o Nobel, ressaltou: “Perante tantos horrores um artista não pode conformar-se com uma diversão sem alcance, com a perfeição formal. Ele falará no vazio se não se voltar para as misérias da História”. O artista moderno é um rebelde que pinta a realidade vivida e sofrida. Mas se sua rebelião for extremamente destrutiva, não chegará aos homens, será um “Calígula de café”. Para falar a todos é necessário falar do prazer, do sol, da necessidade, do desejo, da luta contra a morte, mas falar a verdade! O “realismo socialista” nunca foi realista, pois o academicismo quer seja de direita ou de esquerda esquece o sofrimento dos homens.
A arte espelha a rebelião contra o mundo tal como ele é. Nem negativa total, nem consentimento total. O objetivo da arte não é julgar, mas compreender. “Advogo por um verdadeiro realismo contra uma mitologia talvez ilógica e mortífera e contra um niilismo romântico, burguês ou pretensamente revolucionário”. Questionado se não teria deixado de ser um homem de esquerda ele responde: “Tradicionalmente a esquerda tem sempre lutado contra o obscurantismo, a injustiça e a opressão”.
De todo modo, a peste dos corpos sobrevive na alma! Mas aqueles que têm consciência podem se autovigiar e evitar causar danos ao próximo e, quem sabe, proporcionar um pouco do bem. Afinal, acreditava Rieux: “há nos homens mais coisas a admirar que a desprezar”.
(*) EUGENIO SANTANA é Escritor, Jornalista, Gestor editorial, Ensaísta, Redator publicitário, Blogueiro, Biógrafo, Ornitólogo. Onze livros publicados. Autor, entre outros, de "Ventos Fortes, Raízes Profundas", autoajuda, Madras editora. (41) 9.9667-8484 WhatsApp