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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
VOCÊ ESCOLHE: POLTRONA DE AVIÃO OU CADEIRA DE DENTISTA?
Há duas poltronas que se parecem tanto que quando me sento numa imediatamente me ocorre a lembrança da outra: cadeira de dentista e poltrona de avião. Igual o constrangimento, a má vontade quando me dirijo a elas – vontade de adiar a hora. E a partida. A ânsia no peito, o frio nas mãos. No bolso, o cartão do dentista com a hora marcada. No bolso, o cartão do dentista com a hora marcada. No bolso, a passagem aérea, pessoal e intransferível. Vi certa manhã um gato com seu andar de veludo rondando a gaiola do pássaro. Com esse mesmo andar o medo se aproxima de mim, sinto seu cheiro em ambos os ambientes anti-sépticos, fechados. Cores neutras, luz fria incidindo nos metais reluzentes que lembram farmácia. Hospital. Há sempre uma música suave no rádio. O locutor de voz velada faz o anúncio no mesmo tom impessoal com que o jovem de bordo anuncia pelo microfone as condições atmosféricas em meio das recomendações de praxe.
A enfermeira tão limpa de avental branco não tem qualquer coisa de aeromoça tão gentil que oferece revistas, caramelos e protetor auricular para os tímpanos? O guardanapo é preso ao pescoço com aqueles mesmos gestos mecânicos com que a aeromoça vem nos auxiliar a fechar o cinto de segurança. “Deseja mais alguma coisa?” – pergunta ela com uma amabilidade artificial. Desejaria descer – seria a resposta exata, inequívoca. Vontade de fugir da poltrona de couro tão confortável, a almofadinha na altura da nuca, o assento anatômico, perfeito. Perfeito? Perfeição um tanto suspeita: depois de tantas inovações, por que o avião ainda cai? Por que o dentista ainda dói? Tão fundamental essa conquista da tecnologia com raízes norte-americanas, último tipo,precisão. Invulnerabilidade. A aeromoça se afasta com o sorriso igual ao da chegada. A enfermeira se afasta e as solas de seus sapatos parecem grudar no oleado do chão. O ronco do avião no ensaio da decolagem. O motor do dentista provando uma, duas vezes antes de nele ser atarraxada a agulha. A boca aberta como uma oferenda. O corpo encolhido, o peito fechado, tenso. Entrelaçadas no colo as mãos duras, viscosas. A doce musiquinha do rádio parece vir de muito longe – de que mundo? Acelera-se o motor. O corpo se agarra à cadeira, ambos integrados, formando uma peça só. Curta a respiração. Os olhos apertados. O pedal invisível é acionado e a poltrona com o corpo vai se erguendo no ar. Os motores do avião sopram com mais força, vai levantando vôo. “Senhores passageiros, por favor, desliguem celulares e computadores portáteis, por favor!”. A pata do gato alcança o pássaro...
(copy-desk by Eugenio Santana – cronista, contista, jornalista e poetalado. Autor de livros publicados.)
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