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segunda-feira, 10 de maio de 2010
PÁ/LAVRA
Uma palavra contém muitas. Há pá, instrumento de remover terra; PA, sigla do estado do Pará; e pã, divindade pastoril. Pala é leque e encerra ao menos quinze significados: peça de boné militar, parte do vestuário e do sapato. Lavra é área de mineração.
Palavra implica pal, abreviatura de “Pahse Alternate Line”, sistema de transmissão de imagens coloridas; e la, símbolo do lantânio; e va, de “volt-ampere”, e vã, o que nenhuma palavra é em si, a menos que equivocadamente verbalizada.
Palavra se faz com uma só vogal, a, primeira letra do alfabeto, e mais quatro consoantes. Há muitas palavras – a de Deus, a de honra, a do rei, que não volta atrás, e a que se dá para firmar um compromisso ou promessa.
Palavra contém ala, que tem a ver com fila ou parte de uma construção, e também ar, sem o qual não se pode respirar. E dela se obtém varal, lapa, ara, vala, para e par. E também sentidos, significados, conceitos. Palavra tem mais valor quando entremeada de silêncios. Derramada assim, de boca aberta, esvai-se. Comprida nas ânsias, é pura angústia, faz mal. De bom é o que não se fala entre uma palavra e outra. Então, sossego. Expectação. E vem a palavra, inaugurando o mundo. Plena de vida.
As palavras pesam. Talvez porque seja a mais autêntica invenção humana. Os papagaios não falam, apenas repetem. Não escapam de seus limites atávicos. O olho é a fonte da visão, como o ouvido, da audição. A língua facilita a deglutição, como a traquéia, a respiração. No entanto, a ânsia de expressar-se levou o ser humano a conjugar mente e boca, órgão da respiração e da deglutição, para proferir palavras.
“No princípio era o Verbo”, reza o prólogo do evangelho de João. Deus é Palavra e, em Jesus, ela se faz carne. Unir palavra e corpo é o profundo desafio a quem busca coerência na vida. Há quem prime pela abissal distância entre o que diz e o que faz. E há os que falam pelo que fazem.
A palavra fere, machuca, dói. Dita no calor aquecido por mágoas ou cólera, penetra como flecha envenenada. Ofusca a vista e instaura solidão. Perdura no sentimento dilacerado por um tempo que parece infinito, na mente atordoada pelo jugo que se impõe. Só o coração compassivo, o movimento anagógico e a meditação, que livram a mente de rancores, são capazes de imunizar-nos da palavra maldita.
A palavra salva. Uma expressão de carinho, alegria, acolhimento ou amor, é brisa suave a reativar nossas melhores energias. Somos convocados à reciprocidade. Essa força restauradora da palavra é tão maravilhosa que, por vezes, a tememos.
Orgulhosos, sonegamos afeto; avarentos, engolimos a expressão de ternura que traria luz; hipócritas, calamos o júbilo, como se deflagrar vida merecesse um alto preço que o outro, a nosso parco juízo, não é capaz de pagar. Assim, fazemos da palavra, que é gratuita, mercadoria pesada na balança dos sentimentos.
Vivemos cercados de palavras vãs, condenados à incivilização que teme o silêncio. Fala-se muito para se dizer bem pouco. Fazem moda músicas em que abundam palavras e carecem de melodias. Jornais, revistas, TV, outdoors, telefone, correio eletrônico – há demasiado palavrório. E sabemos todos: não se dá valor ao que se abusa.
O silêncio não é o contrário da palavra. É a matriz. Talhada pelo silêncio, mais significado ela possui. O tagarela cansa os ouvidos alheios porque seu matraquear de frases ecoa sem consistência. Já o sábio pronuncia a palavra como fonte de água viva. Não fala pela boca, e sim do mais profundo de si mesmo.
Guimarães Rosa inaugura “Grandes Sertões, Veredas” com uma palavra insólita: “Nonada.” Convite ao silêncio, à contemplação, à mente centrada no vazio, à alma despida de ilusões. Não nada. Não, nada.
Sabem os místicos que, sem dizer Não e almejar o Nada, é impossível ouvir, no segredo do coração, a palavra de Deus que, neles, se faz Sim e Tudo, expressão amorosa e ressonância criativa.
(Eugenio Santana – Copidesque.)
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