terça-feira, 25 de abril de 2017

CARREGO BREVE A MINHA CRUZ (*)

Um dia é feito de tantos fragmentos, pedaços sujos de estrelas, papéis mofados e carcomidos; crepúsculos e auroras, caminhos que levam a nada. Um dia é feito de portas que se abrem para o limo das palavras: uma lua de papel habita essa terra desabitada. Nas encruzilhadas cavalos dormem um sono cheio de signos e suas crinas trançadas com o lusco-fusco das estradas. As amáveis pessoas que conheci à margem da vida e que me escaparam das mãos de maneira ou de outra como um pássaro escapa, como um sopro escapa de dentro dos ossos voltem, me enlacem e me envolvam e me ajudem a suportar o peso quieto das palavras e o rumor invisível das águias. Por que se perderam de mim essas doces pessoas? Tragam de volta seus rostos como frutas de seda numa bandeja, como borboletas noturnas, lilases. Assim, farejo minhas raízes de frente para o passado nos meus olhos. Antepassados navegam em veleiros espantados. Suas histórias se enredam como flores no concreto, ritos e amores o chão lavado para os momentos sagrados. Um arco de violino toca sete notas nas asas do vento. Fecho os olhos submerso em seus cânticos lamentáveis. O encanto se desmancha. Estou só com o meu destino. Carrego breve a minha cruz. E um retrato entrecortado roído nas bordas pelos ratos que dormem nos porões da memória. Pelos ratos que acordam quando o navio do tempo faz água. Um corte, um hiato, o tempo se contrai e se dilata: quem era eu nesse retrato, quem eram todos aqueles que a vida engoliu? (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, biógrafo, redator publicitário, copidesque, revisor de textos e relações públicas. Sócio da Academia de Letras de Uruguaiana-RS, colaborador da ADESG-DF – Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, Comendador (honorário) da Ordem Ka-huna do Poder Mental, membro ativo e grau superior da AMORC – Ordem Rosacruz. Autor de nove livros publicados e detentor de dezoito prêmios literários, em âmbito nacional. Autor CONTRATADO pela MADRAS Editora, de São Paulo.

sábado, 22 de abril de 2017

A TRAVESSIA PELO RIO DO TEMPO (*)

Existe um questionamento que, quando feito a um escritor, dói mais que picada de serpente. A mim, particularmente, jamais fizeram. Mas fizeram a amigos meus. “Ele é do jeito mesmo que escreve?” é uma indagação brotada do amor: acharam belas as coisas que escrevi e agora estão curiosos para saber se me pareço com o que escrevo. Como afirmei, nunca me fizeram a pergunta, diretamente. Mas eu respondo. “Não, eu não sou igual ao que escrevo.” O que escrevo é melhor que eu. Invento ser outro: O eu - lírico. O texto é mais bonito que o escritor. Fernando Pessoa se espantava com isso. Ele tinha nítida consciência de que ele era muito pequeno comparado com a sua obra. Depois de escrever, leio... Por que escrevi isto? Onde fui buscar isto? De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu... Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta com que alguém escreve pra valer o que nós aqui traçamos? O que escrevo não é o que tenho; é o que me falta. Escrevo porque tenho sede e não tenho água. Sou oásis. Não. Não escrevo o que sou. Escrevo o que não sou. Sou pedra. Escrevo pássaro. Sou tristeza. Escrevo alegria. É que nós somos corpos dilacerados – o corpo é o lugar onde moram as coisas amadas que nos foram tomadas, presença de ausências, daí a saudade, que é quando o corpo não está onde está... O escritor escreve para invocar essa coisa ausente. Todo texto é um ato de alquimia do verbo cujo objetivo é tornar presente e real aquilo que está ausente e não tem realidade. O que escrevo é uma ponte de palavras aladas que tento construir para atravessar o rio do tempo. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, biógrafo, influenciador digital, blogueiro e redator publicitário. Diretor de Redação da revista Cenário Goiano; foi Superintendente de Comunicação no Governo do Rio de Janeiro. Nove livros publicados

sexta-feira, 21 de abril de 2017

A BELEZA TORNA ALEGRE A MINHA SOLIDÃO (*)

Parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxuleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis. Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, esta é a que mais amo: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você”. Pare. Leia de novo. E pense. E reflita. Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu jardim. Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! Vejo, frequentemente, pessoas que caminham por razões de saúde, incapazes de caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando, falando, sem ver o mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam caminhar sozinhas. E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das caminhadas, que é a alegria de estar em sintonia com a Natureza. Elas não veem as árvores, nem as flores, nem as nuvens, nem sentem a asa do vento acariciar o rosto. Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio pelo diálogo prolixo e vulgar. Se estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua solidão tornaria possível que elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um subterfúgio para evitar o contato com nós mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer que “o inferno são os outros”. Eis o que Nietzsche escreveu sobre a solidão: “Ó solidão! Solidão, meu lar!... tua voz – ela me fala com ternura e felicidade! Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas. Pois onde quer que estas, ali as coisas são abertas e luminosas. E ate mesmo as horas caminham com pés saltitantes. Ali as palavras e os tempos, poemas de todo o ser se abrem diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para aprender de mim falar”. Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o seguinte: “As obras de arte são de uma solidão infinita”. E na solidão que elas são geradas. Foi na casa vazia, num momento solitário, que o operário viu o mundo pela primeira vez e se transformou em poeta. O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kierkegaard, um solitário que me faz companhia ate hoje, observou que o inicio da infelicidade humana se encontra na comparação. Experimentei isso em minha própria pele. Foi quando eu, menino do interior de uma cidadezinha de Minas Gerais, me mudei para o Rio de Janeiro que conheci as dificuldades. Comparei-me com eles: cariocas, perspicazes, bem falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em bicar. Nunca convidei nenhum deles a ir onde eu morava: no apartamento do meu tio, na Rua Senador Vergueiro, no bairro do Flamengo. Eu não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A solidão de ser diferente. E sofri muito. Nem sequer me atrevi a compartilhar com meus pais esse meu sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo que compreendessem, eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a minha solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que sou hoje. As caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário, faziam sentido. Como, por exemplo, a música clássica, a beleza que torna alegre a minha solidão... Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. (*) EUGENIO SANTANA é escritor, jornalista, ensaísta, biógrafo, redator publicitário, copidesque, revisor de textos e relações públicas. Sócio da Academia de Letras de Uruguaiana-RS, colaborador da ADESG-DF – Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, Comendador (honorário) da Ordem Ka-huna do Poder Mental, membro ativo e grau superior da AMORC – Ordem Rosacruz. Autor de nove livros publicados e detentor de dezoito prêmios literários, em âmbito nacional. Autor CONTRATADO pela MADRAS Editora, de São Paulo.