sexta-feira, 9 de setembro de 2011

NEVERMORE: TRANSCENDÊNCIA DO VERBO NAS ASAS DA PERMANÊNCIA




Por que razão o ser humano é levado a tomar da pena e do papel (ou de seus substitutos contemporâneos) e realizar a atividade aparentemente gratuita e inútil que é escrever um poema? Em outras palavras, que necessidade visceral é essa que leva o homem a extrair de si um produto que não tem nenhuma função prática para sua sobrevivência, a exercer a difícil e pouco apreciada atividade de criar poesia com palavras? Entre os homens que exerceram a faculdade da criação poética em verso e prosa e que pagaram por ela o preço da incompreensão e do ostracismo, destaca-se o estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849).

Poe obviamente entendia as profundezas dessa necessidade tão inexplicável. Talvez percebesse que o homem faz poesia para melhor entender a si e ao mundo em que vive. Ou para fantasiar outros modos de existência que não o seu, outras realidades para além desta, insatisfatória, com a qual tem de haver-se. Ou para atenuar sua sensação de impotência em relação à natureza, que lhe é indiferente. Ou ainda, como diria o crítico de arte Étienne Souriau (1892-1979), “para ensinar aos deuses como é que se cria”.

O verdadeiro poeta não usa a palavra apenas para representar os elementos da realidade empírica; ele instaura o representado, como imagem e som, às sensações do seu receptor. Quando o poeta enuncia, sua palavra forja e ressignifica a realidade à sua vontade. E Allan Poe era um mestre desse processo criativo.

Seu poema “O Corvo” é um dos mais comentados do mundo como exemplo de microcosmo estético perfeitamente acabado, de composição ao mesmo tempo cerebral e inspirada, na qual a vida e a morte encontram-se intensamente presentes e igualmente misteriosas.

O poema conta uma história fantástica: a de um rapaz que está lendo em seu quarto, na tentativa de esquecer a morte recente da amada, quando, de repente, é perturbado pelo som de uma batida à janela. Ao abri-la, ele nada mais vê além da treva noturna e volta ao quarto. Mas novamente ouve a batida e volta a abrir a janela. Nisso, entra-lhe um agourento corvo pelo recinto e vai pousar num busto de Palas que está em cima da porta.

Então o rapaz tem a idéia de perguntar o nome ao corvo, que lhe responde: “Nevermore” – Nunca mais. A princípio, o rapaz se ri do papaguear sem sentido da ave. Mas, aos poucos, movido por sua dor, dá seguimento ao diálogo, num jogo de ecos: passa a formular perguntas que, num crescendo de agonia, exprimem as dúvidas que tem na alma – se ele algum dia será capaz de esquecer a amada e se virá a vê-la uma vez mais.

A tudo isso a profética ave sempre responde monocordicamente: “Nunca mais”. Exaltado, então, o herói ordena-lhe que desapareça. Mas o corvo volta a responder “nunca mais” e lá permanece pousado, assombrando para sempre o desiludido rapaz.

Contar uma história é fácil. Para construir uma história, basta seguirmos os preceitos formulados, já nos anos 300 a.C. por Aristóteles: configurar uma situação, uma complicação e uma resolução. Mas contar bem uma boa história e carregá-la de poesia já é mais difícil.

A sinopse acima não corresponde, nem de longe, a “O Corvo” de Poe. Ela não constrói paulatinamente o suspense claustrofóbico do poema, os sons encantatórios e hipnóticos que sustentam a obsessão do amante masoquista. Ela não prende o leitor, como o corvo prende a personagem, no círculo da atemporalidade em que o homem se debate com sua impotência diante da morte. Seu ritmo não faz acelerar o batimento de um coração angustiado, como ocorre na caixinha de ressonâncias que é o comovente poema de Poe. Nessa sinopse, o som e o sentido não se conjugam para levar a palavra a ultrapassar sua mera referencialidade e criar no leitor a emoção pretendida – a mesma do amante torturado pela lembrança sem fim do amor ausente.

(copydesk/fragment by Eugenio Santana – Escritor, jornalista e ensaísta. Ex-superintendente de Imprensa no Rio de Janeiro.)